CLÉU ARAÚJO
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Filho teu

por: Cléo Araújo

19 JUL

2014

Ao som da vinheta de “Vereda Tropical”, pingava a última gota de cola Tenaz no papel laminado verde que encapava a cartolina com o texto do jogral. Seria recitado na manhã seguinte, celebrações pela Semana da Pátria, sob o flamular da Bandeira Nacional e em frente a 120 pirralhos militarmente enfileirados, um braço de distância um do outro, tilintando de frio às 7h10 no pátio do colégio das freiras, lá, onde passava a equivalente mariliense da corrente glacial ártica.

A caneta grife-texto destacava o verso sob minha responsabilidade, o penúltimo deles, que dizia: “Eu sou o Brasil do futuro!”, seguido do Grand Finalle declarado em coro pelos sete integrantes vozeirudos do jogral: “O Brasil do futuro somos nós!”. Encerrava-se, assim, o poema de tia Elvira, composto em momento de profunda assunção de sua (e de nossa) parte por tudo que éramos naquele 1980 e qualquer coisa, do Rock in Rio a Tancredo Neves, de José Sarney a Pepeu Gomes.

Anos depois da Cidade do Rock, acho que podemos dizer que o futuro, amigosdarredeglobo, chegou. Os jograis foram praticamente expurgados da educação moderna. Mas ela, dentre outras coisas em nosso país, mudou bem pouco desde aquele show do Queen.

Chacrinha se foi, Ayrton se foi, Zico perdeu um pênalti, Fofão virou Patropi, presidentes foram eleitos, a Beija Flor foi campeã, vices governaram, presidentes foram reeleitos, nosso dinheiro mudou de nome incontáveis vezes, veio até o Mercosul. Mas foi tudo tipo um banho de loja que não nos deixou nem bonitos o suficiente, nem cool o suficiente para entrarmos na sala VIP dos países bonitos e cool. Sem contar que tirar os jograis da educação não fez de nós exatamente os primeiros colocados no PISA.

Basicamente, ficamos assim: podemos comprar bolachinhas Casino no mercado, mas não podemos andar livres pelos bosques que têm mais vida porque há riscos concretos de se topar com um assaltante ou um Aedes aegypti.

Aí penso em quanto evoluímos, desde Lilian Ramos e Itamar Franco até as aberturas do Fantástico. Penso em coisas lindas, como na Ponte Estaiada, no serviço do Laboratório Fleury e em Telê Santana. Penso em estrangeirices que serão sempre estrangeiras, mesmo para aquela parte de nós que vive ameaçando a fuga, o abandono porque essa merda aqui não tem jeito. Coisas estrangeiras, como a verdadeira corrente glacial ártica, lá em Oslo, com toda aquela ‘mierda blanca’ que odiamos amar.

Tão contraditórios os sentimentos por esse país quanto talvez fossem os de tia Elvira naquele 1980 e qualquer coisa. Tão contraditório e bipolar o amor por essa terra quanto cantar o hino a capela às 17h00 no Mineirão e queimar a bandeira nacional às 19h15 na Vila Madalena.

Afinal, não éramos nós “o Brasil do futuro”? Nós, like in you + me?

Eu sou o Brasil do futuro. Você é o Brasil do futuro. Mas como gostamos de falar do Brasil como um terceiro ente não presente, o Brasil do futuro é o Brasil dos outros, e não de todos. E os outros, quando se trata de nós, são maioria.

É o outro que joga o saco de Ruffles pela janela do carro enquanto mete a boca no governo e no Felipão. Os outros são os mensaleiros, os contrabandistas, os sonegadores, os exploradores, os encoxadores, os estupradores, os outros são os políticos rançosos que elegemos, os seres do pântano que têm um iPhone 5S e um cartão de crédito Premium Platinum Diamond Saphire, mas que estacionam na vaga de deficiente físico só por um minutinho porque nossa pressa é mais apressada do que a do outro. E o outro é o outro. O outro é o Brasil. Uma vereda dos trópicos que nos abriga na reclamação. Uma massa de gente e terra e mar famosa, só, pelo seu eterno e conhecido potencial.

“O Brasil do futuro são os outros”.

Nunca nós, tia Elvira.

Sempre o filho do outro.

Nunca o filho teu.

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