CLÉU ARAÚJO
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A arca perdida

por: Cléo Araújo

08 MAI

2007

Assisto a esse tanto de gente que passeia pela vida.

E essa gente deve estar certa, talvez seja essa a forma.

Só que eu… Eu não consigo.

Eu não consigo acreditar em todas essas maneiras superficiais de ser feliz. Ou de se dizer feliz. Ou de se mostrar feliz.

Talvez eu confunda felicidade com vigor.

Mas muita gente confunde felicidade com outras coisas. Senão com vigor, com outras inúmeras facetas da vida terrestre.

Quase a totalidade das pessoas confunde, por exemplo, a felicidade com a existência – ou com o encontro, ou com a eleição, ou com a descoberta – de um par. Se para lavar suas costas no banho, se para fechar o zíper do seu vestido, se para chamar de ‘mô’, se para ter certeza do sexo amanhã, se para segurar sua mão quando você for velhinho, se para ter graus de parentesco inéditos – genro, nora, sogro, cunhado – ninguém sabe. Ter o par é o que importa.

Eu costumo ser o oposto.

Talvez eu confunda felicidade com ranhetice.

Talvez por isso eu não consiga abrir mão de nada que é meu em nome do corretinho, da felicidade de foto de revista, onde há mamão papaya, cachorro penteado e namorado fiel à mesa do café da manhã.

Pode parecer uma cena difícil de ver, mas não se engane. É fácil. Especialmente para os que passeiam pela vida e sentem as coisas tão profundamente quanto uma brisa fraca na superfície da epiderme.

Assim, é fácil ser feliz.

Eu costumo fazer trança no meu próprio cabelo, por exemplo. Aliás, prefiro um torcicolo a resumir a minha felicidade à existência de um par. Não, não me orgulho disso, não acho que fazer trança no meu próprio cabelo me faça uma pessoa feliz. Fecho o zíper do meu próprio vestido sabendo que existem pessoas ímpares no mundo, existem sim. E como pode ser que eu confunda felicidade com falta de modéstia, eu me permito dizer que bastaria abaixar a guarda para que as pessoas viessem. Pelo menos nos próximos dez, quinze anos, enquanto a minha bunda ainda estiver no lugar, eu creio que eles viriam, sim.

Mas eu não consigo abaixar a guarda. Eu não quero abaixar a guarda. Não consigo aceitar uma pseudo-oportunidade de ser feliz assim, quando ela vem toda oferecida. Faceira. Disponível.

Assim, é fácil. Assim, não vale a pena.

Talvez eu confunda felicidade com realização de projetos.

Mas eu também associo felicidade com a sensação de amor por outro ser. Seja ele um par, ou não. Se for um par, perfeito, mas esse já seria um típico caso de felicidade em associação composta: felicidade como amor + sorte, felicidade como amor + acaso, felicidade como amor + destino. E eu não sei se não acredito nessas coisas todas.

Amores incondicionais são coisas que me fazem feliz. Amores dos quais não abro mão, por nada, e aos quais eu dedico a minha prioridade. Me fazem muito, muito feliz, e por isso eu os quero perto, não sei ser feliz à distância.

Talvez eu só confunda felicidade com amor. E ponto.

Por isso eu não aceito a possibilidade de um blind date com a felicidade, de uma coisa ajeitada por pessoas que já se consideram felizes, não quero ser apresentada para uma suposta felicidade que, de antemão, eu já sei: não me interessa, não me completa, não me admira, não me faz feliz.

Assim, seria fácil: “Feche os lhos e deixe, deixe que te amem, com o tempo, tudo vai mudar”

Seria tão fácil atravessar a vida assim, se contentando com um amor que virou amor só porque os outros insistiram que aquele par era perfeito para você. Tudo, tudo menos a solidão, tudo menos a necessidade de se olhar no espelho e se bastar, não é mesmo?

Comigo, não…

Talvez eu confunda felicidade com amor próprio.

A gente deveria ter uns 10 anos. A irmã mais velha da Cidinha, uns 17.

Ela era muito moça. Bonita, alta, magra, cabelo brilhante, comprido, dentes branquíssimos, enfileiradinhos (sem serrinhas embaixo), olhos azuis. Eu sabia exatamente o que eu queria ser quando crescesse: queria ser uma irmã de Cidinha.

Ela tinha coisas tão importantes para fazer, como o magistério, por exemplo… Não perdia tempo com nossos campeonatos de queima e com festinhas dançantes. Eu achava que a gente só virava moça quando chegasse nesse tal do magistério. E morria de pressa!

Às vezes, eu ia dormir na casa da Cidinha. Nessas noites, tínhamos muito do que brincar: de Barbie (na verdade, eu com Barbie e Bob e a Cidinha com Suzie e Falcon, seqüestrado do seu irmão mais velho), de passar trotes do telefone que ficava na sala de visita (era o único de botões e que não tinha extensão), de escrever em cadernos de enquête e de, eventualmente, fazer alguma tarefinha inofensiva. A irmã da Cidinha só olhava de longe. Era muito moça para participar dessas brincadeiras pueris. Preferia ficar fazendo almofadas de talagarça.

Mas chegava uma hora em que gente enjoava de dobrar roupinhas de boneca e arrumá-las em caixas de sapato forradas de papel-veludo (roubado do “kit magistério” da irmã da Cidinha). E era aí que começava a segunda parte da noite: sentávamos sobre a cama e assistíamos à apresentação do conteúdo delicadíssimo do precioso baú da irmã da Cidinha! Lá, ela guardava o seu maior tesouro: o seu enxoval.

Para mim, tudo era muito diferente… Até a palavra “enxoval” soava inédita. Era como falar “devoto” ou “vasilhame”.

Era um baú de madeira, daquele tipo cômoda. Era coberto cuidadosamente por uma toalhinha de renda e decorado com bibelôs de porcelana.

Quando a sua tampa era aberta, um aroma de sabonete de lavanda perfumava o quarto todo. E eu queria ter um baú igualzinho ao dela, assim que chegasse ao magistério.

Cada coisinha que ela ganhava ou fazia (porque mega prendada) ia parar lá dentro. E tudo, absolutamente tudo, morava lá dentro de um saquinho plástico, para não empoeirar, amarelar, sujar, estragar. Eram toalhinhas do tipo “bate-mão”, toalhinhas de lavabo, toalhinhas de cobrir pão, toalhinhas de múltiplas utilidades, passadeiras, jogos de lençol de linho com bordado inglês, toalhas de mesa, camisolas de lua-de-mel, hobbies de seda, chinelinhos de quarto, velas perfumadas, aventais, sachês, panos de prato, colchas, revistas Noiva, forros de travesseiros, travesseiros, almofadas de talagarça, até uma rede ela tinha lá dentro! Era uma coisa sem fim. Quando ela chegava ao fundo do baú, eu já nem me lembrava mais do que havia sido exibido no começo da exposição. E ainda tinha a parte de guardar, tudo certinho, exatamente do jeitinho como estava antes. E a gente podia assistir à mesma exibição, só que na ordem inversa. E tudo ficaria ali, guardadinho, até que outra visita chegasse e ela pudesse repetir todo o procedimento, orgulhosa, dona do seu futuro, que morava ali protegido, dentro daquela arca, trancado a chave.

Sim, era meio conservadora a família da Cidinha. E os chinelinhos de quarto já não estavam mais na moda desde algum tempo. Estavam “embauzados” há pelo menos uns sete anos (moravam mais no fundo). Mas ela os guardava, zelosamente, e não punha em uso de jeito nenhum! Ai da Cidinha se relasse aquelas mãos meladas neles! Eram do enxoval. Sagrados.

A minha amizade com a Cidinha se dissipou com os anos. Nunca mais soube dela, ou da irmã que, aliás, era “prometida” para um rapaz da vila de seus pais na Espanha, e de quem ela falava o tempo todo enquanto exibia seu enxoval. Era com ele que ela estrearia cada pecinha dele e era com ele que ela teria um casal de bebês (algumas roupinhas já faziam parte do enxoval, aliás). Era uma romântica, a irmã da Cidinha. Do tipo dos livrinhos que minha avó lia para gente dormir.

Anos-luz depois, num desses feriados em que eu me interno no interior, qual não foi minha surpresa: cruzei com a irmã da Cidinha em uma padaria. Demorei a reconhecê-la, mas era ela sim. Fizemos um “oi” tímido, só com a cabeça. Ela quase que se escondeu atrás do freezer de sorvete, parecia não querer ser vista… Tudo muito estranho. Sei que ela, de alguma forma, ali, diante dos meus olhos, era simplesmente a antítese da moça brilhante – com todo um futuro planejado e bem guardadinho dentro de um baú – que eu tinha em mente. Estava tristonha, cabisbaixa, sem brilho, com uma criança de uns cinco anos fazendo uma birra horrível no meio da padaria e um rapaz um tanto grosseiro esperando por ela (dentro do carro) do lado de fora. E ele não tinha cara de príncipe espanhol, tsc tsc tsc. Berrou seu nome umas duas vezes, gritou “vambora!” umas quatro, muito gentil mesmo. Não me surpreendeu ela querer se esconder. Afinal, eu sabia o que ela tinha sido no passado: a mulher que eu, e pelo menos mais umas três fedelhinhas da rua, gostaríamos de ter sido quando crescêssemos.

Comecei a inventar a história da sua vida, e a imaginar que fatos a teriam levado até aquele lugar, além do pão quente.

Imaginei que ela perdera contato com o prometido espanhol, ou porque ele havia virado uma drag queen em Madri, ou porque havia virado monge, ou porque ele nunca houvesse existido e ponto. Imaginei o enxoval sendo lentamente colocado em uso ali mesmo, na casa dos pais dela e, depois, na casa onde ela foi morar com aquele rapaz tão doce, e que não parecia fazer o tipo que prestaria atenção em suas camisolas de seda e nas suas artesanais almofadas de talagarça. Isso sem contar o chinelinho. Pobre chinelinho. Uma vida toda dentro do baú… Deveria esperar uma recompensa à altura, quem sabe, até uma Lua de Mel na Andaluzia! Mas acabou ali, puidinho, sem nunca ter nem saído do bairro…

Voltei para casa uns dois dias depois.

Fui direto para o guarda-roupa, já que o meu móvel que mais se aproxima de um baú guarda as roupas de brincar com a cachorra e já que eu sei que não tenho toalhinhas de coisa nenhuma.

Revirei tudo em busca de algo novo, de algo com a etiqueta, de algo do tipo que a gente compra e guarda para usar “numa ocasião especial”.

Achei.

Duas camisolas que comprei numa fase apaixonada. Tão novas, e tão antigas. Tão lindas, e tão intactas. Olharam sorridentes para mim, as pobres. “É minha vez, moça? É minha vez?” E era. Era a vez delas sim.

Desde então, roupas com etiquetas e/ou ensacadas não moram mais lá em casa; luvas de forno antigas foram parar no lixo, abrindo espaço para um novo kit de cozinha que eu ganhei da minha avó no Natal passado, estampado de vaquinhas; o caderno para anotar receitas, confeccionado pela minha tia-avó em renda, se transformou no meu mais novo caderno de anotações. Mora ali, do lado do telefone. Nele eu não escrevo coisas românticas, do tipo “2 colheres de chá de canela da China” ou “ deixe cozinhar até levantar fervura”. Nele eu escrevo coisas duras, secas, ríspidas, do tipo “ração”, “buscar filtro na assistência técnica” e “comprar Vanish Poder O2”.

Vesti uma das camisolas-relíquias. A mais bonita delas. Brinquei com a cachorra, lavei a louça, fiz um espaguete ao sugo que ficou um espetáculo e abri uma garrafa de cabernet… Tudo ao som de Chet Baker.

Sentei-me no sofá e tentei racionalizar. Tentei visualizar a mulher na qual me transformei. Olhei ao meu redor, analisei aspectos da minha vida… Cheguei a poucas, mas importantes conclusões.

Se, amanhã, um príncipe espanhol resolver vir bater na minha porta, é bom ele já vir munido de um baú.

Porque a minha parte do “dote” eu prefiro oferecer nessas coisas assim, do tipo que me rodeiam. Deliciosas e perecíveis.

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