CLÉU ARAÚJO
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A primeira moqueca

por: Cléo Araújo

23 JAN

2015

Até mais ou menos os nove anos de idade, comer, para mim, era um suplício.

Imagino os sonhos de mamy, pessoa imbuída da missão genética de me alimentar: assistir-me devorando uma bela pratada de arroz e feijão. Uma quimera, uma improbabilidade quase tão extravagante quanto dançar um tango de Piazzolla com Paul Newman no Baile do Havaí do Tênis Clube. Por isso, e quase já acostumada com meu pouco apetite, ela se contentava com meu almoço de faquir: três garfadas de bife acompanhadas de uma rodela (fina, do tipo transparente) de tomate. E era só.

Ter de engolir bife com salada de tomate não tinha nada de prazeroso, por mais bem preparado e dourado que estivesse o bife e por mais vermelha e tenra que estivesse a única e solitária fatia de tomate no meu prato.

Para começar, eu não gostava de carne.

Tinha sempre um nervinho nojento e borrachudo que eu acabava mordendo. Era tão fresca que chegava a arrepiar.

Achava tomate uma coisa sem propósito. Ficava no máximo aceitável quando regado com muito sal, muito azeite e muito vinagre. Achava a coisa mais besta, um tomate, nem fruta, nem legume, só tomate.

Só suportava encarar a hora do almoço porque corria o risco de ficar raquítica e carregar aqueles joelhos pontudos, marcando a calça do uniforme para o resto da minha vida, e isso eu suportava ainda menos do que uma casca de tomate ou um nervinho de bife. Usar a calça do pijama por baixo da calça do colégio não era nada legal nos meses de fevereiro e março, debaixo de 32 graus.

Almoçar era, por essas e outras, pura obrigação.

Eu não gostava de comer.

Mas tudo começou a mudar naquele mês de outubro durante uma viagem que fizemos em família para Recife, naquela época em que os anos escolares ainda eram séries e eu estava na sexta delas. Os joelhos pontudos ainda eram minha marca registrada, nem os charmosos biquínis da Blue Man eram capazes de distrair. E foi ali, nas piscinas daquele agradável hotel pernambucano, que minha vida começou a mudar.

Fomos, em uma das tardes, almoçar em um restaurante muito agradável, todo de madeira, à beira mar.

Eu, como sempre, não estava com fome.

Passei pela porta do restaurante absolutamente incrédula. Comer, eca. Então, um cheiro. Um tóxico. Fui imediatamente envenenada por um aroma. Lembrava limão, mas não era limão.

“Pai… Que cheiro é esse?”

Fui informada por ele que aquilo era coentro. Eu não sabia o que era ou que cara tinha um coentro, mas soube naquele momento que era aquilo que infestava o ar com um perfume adoravelmente desconhecido, picante e apetitoso.

Chegamos à nossa mesa e eu continuei sendo impactada aos poucos. A doce ardência das cebolas, o cheiro amendoado do dendê.

Senti fome.

Foi assim que descobri que gostava de comer. Numa epifania do apetite. Eu precisava do Nordeste. Precisava de coentro, da cebola, do dendê, hum, o que era agora… Leite de coco.

A moqueca chegou.

Meus pais acharam que eu ia morrer, de tanto que, de repente, eu comi.

Um Comentário

  • Anselmo Carneiro disse:

    Como vai Cleo rs?
    Muito prazeroso ler esse seu comentário, e acabar entendendo que o simples nos faz mudar paladar, fome e curiosidade. Quando criança era uma pessoa irredutível para comer, e um adendo, carne era um ser de outro planeta. Mas um dia tudo mudou, fomos para uma festa de família quando deparei com meu pai comendo prazerosamente um carpaccio seguido de uma expressao de satisfação e gozo daquela bendita carne crua. Imagina eu que não comia carne se iria experimentar esse tal carpaccio. Mas o prazer do meu pai falou mais alto, que a gustou a minha vontade de sentir aquele prazer inigualável. Resumindo, foi a melhor carne apreciada da minha vida naquele momento e hoje não vivo sem qualquer tipo de carne. Beijos e um ótimo Final de semana.

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