CLÉU ARAÚJO
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A valsa – parte final

por: Cléo Araújo

21 JUL

2012

Ela só pensava e pensava e contraía e contraía o abdômen toda vez que a ideia de beijar Zedu na boca se desenhava no seu cérebro acordado.

Ela e Zedu, abraçados, ao som do Danúbio Azul. Ela com as mãos na nuca de Zedu. Zedu com as mãos na sua cintura. Zedu lindo num terno alugado qualquer banhado em Azzaro. Ela com aquela roupa detestável.

Foram duas provas do vestido. Uma no forro, memória refletida no espelho que ela gostaria de poder apagar da sua mente e, depois, uma no vestido real, só que ainda sem as costuras acabadas. Mioko tinha feito seu melhor, não havia dúvida, mas nem de longe aquele seria o vestido que ela escolheria espontaneamente para usar como testemunha do seu primeiro beijo. Mioko tinha ajudado mais do que podia; tinha sido ela a autora da sugestão de usar um toco da sobra do tecido para forrar um sapato, o que ela havia aceitado sob o risco de ter que usar o bendito prata velho mais cara de avó que havia disponível na Oriental, a loja de calçados do centro.

Tinha forrado, enfim, uma sapatilha com saltinho.

Medonha. Necessária.

Zedu, sem fazer ideia do drama que ela atravessava, fazia um aparente esforço para quebrar o gelo e transformá-la em algo mais do que sua Ghost Mapper.

Dois dias antes da festa ele cutucou de leve seu ombro na classe no meio da aula de OSPB. Ela olhou para trás e ele lhe passou um bilhetinho. Sua orelha incendiou. Virou para frente, abriu o pequeno pedaço de papel. Era de Andréa, Zedu tinha sido apenas uma ponte: “Querida amiga, vamos comer enrolado na padaria na hora do lanche? A Carina também vai, tudo bem?” Nervosa e ainda com a adrenalina inundando seu corpo, ela escreveu “Tudo bem” e virou de volta para devolver o bilhete para Andrea via Zedu. Quando o fez, deu de cara com Zedu estendendo a mão com outro bilhete. “Esse é meu”. Trocaram bilhetes – ele pegou o dela para
Andrea e ela pegou o dele para ela – e agora, sim, suas mitocôndrias estavam com falta de ar.

Abriu, devagar. Aba por aba. Lá estava ela, a inconfundível letrinha de criança recém alfabetizada de Zedu, letra de mão e de forma misturadas na mesma palavra: “Que horas você vai para festa da Gabi?”

Tanta coisa por trás dessa pergunta. Tanta coisa.

Teria ele se esquecido do horário? Quereria ele ir no mesmo horário que ela? Preferiria ele esperá-la do lado de fora antes de entrar? Precisaria ele de uma carona? Resposta “Vamos com a mãe da Sílvia. Combinamos de ela me pegar às oito. Por quê?”

Quando devolveu o bilhete para ele já tinha se arrependido do “Por quê”. Mas viu que rapidinho ele começou a responder.

“Eu vou com o Bigorna.”

Bigorna era seu amigo do time de basquete. Mas a resposta era absolutamente insatisfatória. Ela queria saber por que ele queria saber que horas ela ia. Não tinha perguntado com quem ele ia.

Segunda tentativa: “Que horas vocês vão?”.

“Meu irmão vai levar a gente.”

Mais uma vez, sem resposta. Era uma conversa sem sentido. Mas, enfim, era uma conversa. Zedu estava interessado em seus movimentos no dia da festa. Seu par, seu amor, seu primeiro beijo, seu Frankstein. E a ansiedade era tanta que ela resolveu colocar um fim na conversa. “Que bom, bom, a gente se vê lá. Vai ouvindo o Danúbio Azul para treinar.” Carinha risonha assinando a correspondência. Ela sempre era engraçada quando estava nervosa.

Ouviu a risadinha dele quando leu o bilhete.

Ela estava completamente apaixonada.

O sábado da festa amanheceu nublado. Agora que ela já tinha se conformado em vestir a fantasia de Fanta Uva, tinha todo um cabelo para lhe preocupar. Nublado, umidade, chuva. Sua mãe sugeriu um semipreso. A coisa só ia piorando. Um semipreso, no vestido bolo de uva, com a sapatilha encapada e a meia cor da pele. Sentia-se conquistando o décimo oitavo lugar no concurso de miss simpatia mirim.

Foi um momento em que quase pediu ao universo para não ter aceitado o convite para dançar a valsa. Estavam lá suas amigas desvalsadas, adequadamente vestidas em seus vestidos de cotton preto e jaquetinhas jeans, sexy e descoladas, e ela lá, encapada por uma saia bufante e um sapato que ornava. Nada poderia deixá-la menos segura ou mais roxa.

O carro da mãe da Sílvia estacionou na frente do salão Cristal, local da festa de Gabi. Desceu Sílvia e sua roupa jovial, Clarice e sua roupa jovial e ela e sua vestimenta de teatro do colégio da década de 1960. O cabelo estava preso. Não semipreso, preso por completo, só com a franja solta. Estava tudo errado.

Foram andando pela trilha de luzinhas que levava até a entrada do salão. E lá estava ele, o mais lindo Boris Karloff de todos os tempos, num terno cor de café fraco, mas que nele estava deslumbrante. Quando estava quase chegando perto dele, viu Priscila, outra valsete, passando correndo com três assistentes dando cobertura. Devagar, logo atrás dela, vinha Bigorna que contou, no meio de risadas histéricas, que a saia da Priscila tinha rasgado enquanto ela dançava Bizarre Love Triangle. “Everytime I see you falling”.

Nenhum salgadinho descia. Nenhum frango enroladinho no bacon, nenhum quitute de massa folhada de queijo. Não tinha fome, não tinha nada. A moça que estava organizando a valsa, uma prima da Gabi – que usava um vestido que mais lembrava o chafariz da igreja matriz – começou as reunir o elenco da valsa. As meninas que vestiam roxo deveriam localizar seu par.

Ela saiu lá fora, porque já fazia uma hora que estava na festa e ainda não tinha visto Zedu entrar. Zedu era um cara outdoors. Estava sempre do lado de fora, nunca do de dentro. Olhou e viu que ele, Bigorna e Olavo estavam venerando uma mobilete, falando alguma coisa sobre uma engrenagem e um contagiro.

“Oi gente, então, Zedu, a prima da Gabi está chamando para valsa…”.

“Ah, vai ser agora?”

“É, temos que ir para fila.”

“Tá. Vamos, então.” Risadas.

E lá foram eles, lado a lado, até onde se acumulavam meninas de roxo e meninos de terno marrom. No caso dos garotos, não era uniforme, mas definitivamente um hit.

Todos ganharam da prima uma rosa branca que deveriam colocar no bolso da frente do paletó. Zedu obedeceu mas, antes, fez uma graça colocando o caule da flor na boca, gesto que ela não entendeu se era para ser sexy ou engraçado, porque fato é que não foi nem uma coisa nem outra. Mas ela riu, gentilmente e mesmo assim. Zedu passou o braço pelo dela, esticou a coluna e estufou o peito. Cara de sério.

Ela sorriu e olhou para frente.

Eram o segundo casal da fila.

Uma voz ao microfone anunciou a aniversariante. Anunciou o seu pai e o Danúbio Azul começou a tocar. Depois de vinte segundos de música, a voz ao microfone anunciou a entrada dos quinze casais. E lá foram eles, salão adentro.

Zedu estava muito sério e compenetrado. Dois pra lá, dois pra cá, dois pra lá, dois pra cá. Não puxou assunto e em resposta, nem ela, que ficou com medo de causar desconcentração e tomar um pisão na sua sapatilha forrada.

Foram dois minutos e a valsa havia terminado.

Então era aquilo?

Abaixaram as mãos. Zedu segurou a sua por catorze segundos. O homem do microfone anunciou que a pista estava aberta e John Secada entrou com “It’s just another day”.

Ele olhou para ela, deu um sorriso e saiu da pista, soltando devagar da sua mão.

Zedu e todo seu tamanho. Zedu e seus pés gigantes. Zedu e seu cabelo de Boris. Zedu e sua letrinha. Zedu e seus mapas nojentos.

Zedu deu um beijo em sua mão e voltou para o lado de Bigorna, da mobilete, da engrenagem e dos contagiros.

E foi assim que a festa da Gabi acabou.

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