CLÉU ARAÚJO
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Amor em tempos de guerra

por: Cléo Araújo

18 DEZ

2008

Os canais de televisão – todos os três que pegavam em Marília – passavam notícias sobre a coisa mais terrível e improvável que eu já tinha visto na TV ao longo de meus quase catorze anos de vida.
Um país do qual eu nunca havia ouvido falar antes – um tal de Kuwait – havia sido invadido por outro – o Iraque – esse sim eu já conhecia por causa do Saddam, que já era bem famoso na época. O problema, pelo que eu conseguia entender, era o petróleo. Mais o excesso do que a falta dele. E era uma guerra de verdade, com soldados, tanques e bombas que explodiam. Até então a única guerra que eu havia presenciado na vida tinha sido a Fria, que não contava com esse tipo de cenário cinematográfico, onde todos os projéteis pareciam ser verde-cintilantes, o que era aterrorizante. Mas a situação se agravou mesmo quando os Estados Unidos resolveram comprar a briga e defender o tal Kuwait. Eu não conseguia entender o que é que os Estados Unidos tinham a ver com aquilo tudo, mas meu chute era que a culpa era do petróleo.
Era um tal de “Scud” para cá e “Patriot” para lá que eu comecei a perder o sono ao pensar na possibilidade daquela se transformar na Terceira Guerra Mundial. A terceira e a última. Assim previa Nostradamus.
Mas mesmo com tudo isso, mesmo com a possibilidade iminente de uma hecatombe nuclear e mesmo com toda consciência geo-política que eu achava que tinha à época, o meu problema era outro.
Sim, o fim do mundo poderia chegar, mas o meu problema era que eu ainda não tinha beijado ninguém na boca.
Já tinha dado aqueles selinhos mixos nas brincadeiras de “salada de fruta”, mas caramba. Eu já me sentia tão mulher, queria beijar de verdade e, se possível, de língua.
Não me achava bonita. Não era nem muito alta, nem muito arredondada. Tá, me achava mais ou menos inteligente, ligeiramente feminina (tanto quanto se consegue ser aos 13 anos), mas era magrela (não em um bom sentido – eram os anos 1990) e cabeluda.
E eu tinha um paquera.
Eu sempre tinha um paquera.
Esse era um ano mais velho do que eu. Tinha tomado bomba e estava na minha classe. E eu achava que o melhor caminho para conquistá-lo era fazer de tudo por ele. O que significava colocar seu nome em trabalhos de história dos quais ele não havia participado e fazer para ele os mapas encomendados pela professora de geografia.
Ele me chamava de “meu anjo”. E era o que eu era mesmo.
Eu acreditava que toda dedicação e todo esmero que eu depositava, por exemplo, ao elaborar um belo exemplar da África – Relevo, deveria render – fosse na hora do recreio, fosse em alguma festinha, fosse nas aulas de Psicologia de Grupo – aquele tão esperado beijo. Se amanhã alguém apertasse o botãozinho vermelho e o mundo acabasse, afinal, pelo menos um eu teria garantido.
Mas aí, naquela manhã fatídica, uma bomba metafórica explodiu na minha cabeça. Descobri que o dito cujo estava namorando uma menina da oitava “B”, que nunca, jamais havia feito um mapinha sequer para ele em toda sua vida. E ela era do time de vôlei da escola e tinha peitos grandes. Fiquei muito puta. Meu sonho era ter um “Scud” pra mandar direto para sala daquela menina e explodir tudo.
Mas lá veio ele, cinco minutos depois dessa descoberta frustrante, no intervalo entre a aula de álgebra e de literatura, me pedir um mapa da Ásia Política como se nada houvera.
“Não vai dar, não.”
A sensação de ser a nerd que só servia para ajudar em assuntos da escola para depois ser trocada por uma peituda de uma oitava “B” qualquer me tomou de raiva e de força. Parei de paquerá-lo naquele exato instante e comecei a prestar mais atenção nos meninos do terceiro colegial.
A Guerra do Golfo acabou.
E o primeiro beijo, eventualmente, aconteceu. Foi uns meses depois, na festa de quinze anos de uma amiga e com um menino que já tinha até passado na primeira fase da FUVEST.
O meu ex-amor, o dos mapas, se transformou em uma memória distante em uma página longínqua da história.
Mas confesso que até hoje preciso combater certa tendência de querer sair confeccionando mapas – lindos, perfeitos, coloridos e bem delineados – para qualquer recruta que me apareça. Preciso me lembrar de que essa nunca foi nem nunca será das mais acertadas estratégias de conquista.
Basta uma peituda aparecer para que se perca a batalha.
Se são traumas dos tempos de guerra?
Só podem ser.
Só podem ser…

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