CLÉU ARAÚJO
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Anatomia de um susto

por: Cléo Araújo

17 OUT

2007

Ajeitei-me no sofá para assistir um filme.

“Eu, minha mulher e minhas cópias”, clássico com Michael Keaton.

Comi mais uma ponta de cachorro-quente antes de me retirar para os meus aposentos.

Senti culpa por isso, mas é que estava tão bom… Bijou ganhou uma ponta de uma salsichinha também.

Fechei as janelas da sala, uma chuva prometia cair, graças a Deus.

Subimos as escadas, eu e Bijou, em direção aos nossos leitos. Lençol limpinho, travesseiros afofados, uma colcha leve de piquê caso esfriasse de madrugada… Tudo perfeito.

Rapidamente Bijou se ajeitou no seu canto, enquanto eu fui fazer meu toalete básico antes do sono (espumas faciais, tônicos, ácidos, cremes, enfim, eu tenho 30).

Escolhi o lado da cama que tem o abajur para leitura. Abri Martin Page para saborear finalmente o último capítulo desse livro que, de tão fino, não termina nunca. Qualquer ser humano o teria lido em três horas. Eu o lia há três semanas.

Umas gotinhas de chuva caíam lá fora e eu estava com pressa para aproveitar aquela noite perfeita para se dormir pesado. Fechei o livro de novo. E os olhos.

Lembro-me de ter caído no sono quando Bijou já roncava e não reagia mais a barulhos estranhos lá da rua.

ZZZZZZzzzzzzzzzzzzzzz.

“PLAFT, PUM, PAF, BUM, CRASH, BOOM, BANG!”

04h15 da manhã.

Acordo com esse estrondo monumental vindo lá da sala/cozinha.

Coisas, muitas coisas caindo.

Catapei, dlin, dlin, paft!

O som é do tipo que não pára. Ecoa.

Eventualmente, a última coisa se ajeita no chão.

Silêncio.

Eu e Bijou, com caras de pamonha, nos sentamos sobre a cama.

Eu meio dormindo, meio acordada; ela meio nem aí.

Eu com o coração entre a boca e o chão. Ela esperando para ver o que eu ia fazer. Ela não emite um latido, mas dá uma leve arrepiada na nuca e se senta ao meu lado para me dar apoio. Encara a porta do quarto, por via das dúvidas.

Fico ali, esperando retomar as faculdades normais para decidir o que fazer na seqüência. Ligar para alguém, pular pela janela, gritar?

Percebo que estou mais pra acordada do que pra dormindo e começo então a fazer uma retrospectiva racional dos meus últimos passos. Tento me recordar de coisas que pudessem ter ficado em posição de queda iminente, de forma a provocar um dominó tsunâmico de sons metálicos e de plásticos se espatifando no chão.

Bijou continua muda.

Não consigo pensar em nada que possa ter provocado o barulho

Sem acender as luzes, vou até a porta, na ponta dos pés, é claro (as mulheres têm certeza que não são vistas quando andam na ponta dos pés). Sei que preciso descer. Não vou mais dormir antes de descobrir que merda é essa rolando lá embaixo. E se eu não for, ninguém irá por mim.

Pego Bijou no colo.

Abro a porta do quarto.

E a coisa piora.

Vem de lá de baixo o som de uma torneira ligada.

Phodeu.

Já imagino cinco homens grandes trabalhando na minha sala. Devem estar encapuzados, munidos de muchacos, beretas, toucas de esqui e cordas de rapel; estão empacotando em bolsas da Louis Vuitton (que trouxeram do assalto anterior, é óbvio) os itens de grande valia que se encontram em minha residência: velas perfumadas, almofadas com baba de cachorro e uma tupperware com salsichas de cachorro-quente recém preparadas (estavam deliciosas, de fato).

Começo então a imaginar minha fuga 007: de pijama e Bijou nos braços (inerte), num movimento rápido, eu abriria a porta da frente (e única) e sairia correndo pelas escadas do prédio, gritando pelo socorro dos vizinhos que nunca vi.

Não, seja mulher, sua fraca, encare o medo!

Pronto, estou pronta para negociar com os arrombadores. “Não me façam mal, eu dou o filet mignon congelado que acabei de comprar, esse maço de cidreira, juro, moço, dou meu carro para vocês, mas me deixem eu e a Bijou em paz, por favor, pelo amor de seus filhotinhos que ainda estão no céu.”

Ainda estou no meio da escada. Não percebo outro som que não o da água caindo.

Começo a pensar que pode ser que não. Que os invasores não sejam cinco arrombadores profissionais em busca das minhas riquezas, mas sim… Seres de outra dimensão.

Muitas, muitas possibilidades.

Às 04h22 da manhã a mente resolve ser assim, criativa a valer.

Ainda sem chegar ao fim dos degraus que poderiam me levar à liberdade, penso: “mas o que mais poderia ter aberto uma torneira que não uma mão?”.

Ah, que merda.

O barulho da torneira parece vir da área de serviço. Quero gritar “quem tá aíííííÍÍÍÍííííí? Pode sair, estou avisando, estou armadaAAAAaaAAaaaaaAAA!” bem alto e esganiçadamente, espantando fosse quem fosse o invasor, estivesse ele vivo ou morto.

Ah, que bosta, como eu queria poder ter alguém aqui com quem pudesse contar!

Um macho! Humano ou canino. Isso é coisa para homem, encarar o ladrão! Pô, a Bijou está aqui, me dando apoio, mas sou eu quem tem que protegê-la. Ela não é exatamente um pitt bull! Eu não tenho ninguém encarando por mim o escuro da noite na minha cozinha! Sabe a cena de filme, na qual o marido sai pela casa em busca do potencial raptor com um guarda-chuva, uma frigideira ou um taco de beisebol na mão enquanto a mulher fica na cama, com o lençol quase cobrindo a cabeça? Nã nã ni nã nã! Aqui sou eu, enfrentando o desconhecido de cara amassada, pijama e cachorro nos braços! Pensei em levar um vasinho para jogar na cabeça do meliante, caso a agressão fosse inevitável, mas achei estúpido, fiquei com vergonha.

Vou caminhando, pronta para enfrentar o perigo com a própria vida, desde que eles me prometam poupar a Bijou.

Estou resignada, sei que não tenho mais como fugir.

Serei atingida pelas costas caso tente escapar pela porta.

Chego, então, à área de serviço…

E está ali, um mistério desvendado.

Uma porcaria desses suportes de inox, do tipo que se usa dentro do box para colocar xampu e condicionador, residia em minha área de serviço há meses; nele, descansavam silenciosas latas de sabão em pó, potes de Bijou, porta detergentes, escovinhas, escovões, pregadores… E ele, o suporte, estava preso na parede com o quê? Sensíveis ventosas de silicone! Sim, tudo isso caiu sobre o tanque quando elas não mais resistiram ao peso. E não me pergunte como, mas a avalanche de coisas provocou a abertura da torneira!

Pronto, estava esclarecido o mistério.

Era aquela a anatomia de um susto.

Sei que não dormi mais. Já a Bijou fez um xixizinho e saiu tranqüila em busca de um lugar para se lamber. Antes de cair novamente no sono, me olhou meio como quem dissesse “falei que não era nada! Você concorda que se houvesse uma pessoa aqui eu teria latido horrores, bobocona?”

Sim, concordo. E ela, como sempre, tem razão.

De qualquer forma, prefiro eliminar toda e qualquer ventosa de silicone que exista nesse lugar. Por culpa delas eu quase fui ridícula. Quase achei que certas coisas são coisas de homem. Quase pulei pela janela de pijama, descalça, com uma cachorra amarrada nas costas em um lençol, pedindo ajuda por causa de uma terrível lata de sabão em pó que rolava desgovernada às 04 da manhã numa casa sem macho.

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