CLÉU ARAÚJO
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Blackout

por: Cléo Araújo

06 AGO

2010

Era domingo à noite quando o telefone tocou.

Todo mundo já deveria estar tranquilo, em casa, esperando a pizza, ninguém liga para ninguém num domingo à noite. A campainha me alertava para o que eu, de certa forma, senti antes mesmo de atender. Não era minha mãe.

Olhei o identificador de chamadas. Lá, um número. Do número, às profundezas da minha memória, lugares recônditos que nem eu sabia que existiam. Pois aquele número estava guardado lá, na quinta gaveta de baixo, à direita, morava há anos e anos junto com as fórmulas de química orgânica e o CD do Ace of Base. A conversa foi longa e irreproduzível. Cabe dizer que se falou de quase tudo sem se dizer absolutamente nada.

Na segunda-feira o sol nasceu. Os pedreiros da construção ao lado de casa deram suas primeiras marteladas. Eu comi duas torradas com geleia de morango da Turma da Mônica no café da manhã. Tudo corria bem, sob condições normais de temperatura e pressão. Saí, então, com meu carro da garagem, como faço todos os santos dias da minha vida, desse prédio, há dez anos consecutivos. Ao chegar à calçada, dou uma freada brusca. Um pedestre passava. Mas não era um pedestre. Era alguém que eu jamais esperaria poder quase atropelar, especialmente naquela calçada. Não podia acreditar no que meus olhos viam ali, na frente do para-brisa. Ontem, o telefonema, hoje, o pedestre. O pedestre mais improvável de todos os pedestres. O pedestre que nem mora aqui. Nem nesse prédio, nem nessa quadra, nem nesse bairro, nem nessa cidade. A catatonia não me permitiu descer do carro. O pedestre era rápido. Não consegui chamá-lo. Mas naquela tarde, ainda descrente, enviei um SMS com uma pergunta: “certeza de que era você mesmo? Hoje, ali, andando?”. “Sim, era eu”. Bizarro.

A terça-feira chegou. Certo receio já se instalara no meu inconsciente. E hoje, quem será? Onde será? Como será? Mas até ás seis da tarde, o dia fluiu normalmente, sem nenhum incidente significativo. Já em casa, ligo o computador e preparo-me para o banho quando, já de touca na cabeça, ‘zrammm’. Algo me chama no Skype.

Corro me sentar na frente do computador e não acredito no que meus olhos me dizem. Esfrego o rosto, soluço, dou uma volta em torno da cadeira, pulo em uma perna só e rezo um Creio em Deus Pai. Tiro a touca com medo de ser filmada pela câmera. Será possível? O quadradinho continua piscando, num ‘plin, plin, plin’ surreal. Só consigo ler a primeira palavra da mensagem, que obviamente era “oi”. Só isso. Um “O” e um “I”. Duas letras que têm o poder de me deixar em choque, gaga, monga e songa. Tomo fôlego e leio a mensagem toda – “oi, estou por aqui, queria te ver”.

Consigo articular meus indicadores para responder “oi” de volta. Faço isso e, ato contínuo, todas as luzes de casa, do prédio, da quadra, do bairro se apagam e a escuridão é imediatamente invadida pelos sons dos geradores. Não sei o que aconteceu, mas por um momento, tenho certeza de que a responsável por aquele blackout sou eu, que suguei toda a energia do universo naqueles minutos de adrenalina explodindo em minhas suprarrenais. Torço para que ele tenha recebido o meu “oi” e para que ainda tenha o número do meu telefone. Afinal, ainda é terça.

A energia retorna por volta da zero hora da quarta-feira.

Vou dormir pensando.

Tem gente que mora numa gaveta recôndita da nossa memória. Tem gente que caminha desavisada bem ali, na nossa calçada. Causa certa nostalgia encontrar essa gente. Certo espanto, certa surpresa.

Mas tem gente que… Bom… Tem gente que tem o poder de iluminar o mundo inteiro, mesmo no meio de um blackout.

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