CLÉU ARAÚJO
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Efemérides paranóico-realista de uma mente perturbada

por: Cléo Araújo

01 FEV

2006

São 18h e eu estou esperando pelas 21h desde as 9h. O dia está mais longo do que o dia do desembarque aliado na Normandia! Mastigo gelo com restos de mate sabor pêssego light e penso: será? Será que existe alguma chance? Esse cara? “O” cara? A idade é boa. Trinta e um. Passou a barreira dos trinta e sobreviveu. E eu? Será que ele me achou velha? Será que meninos de trinta e um preferem as meninas de vinte e quatro às de vinte e oito? Mas aí, será que quatro aninhos de diferença impactam tanto assim o gosto de um homem por uma mulher? Xô, paranóia! Xô! Até porque já são 18h30, vou tomar um banho de banheira com sais aromáticos, relaxantes, afrodisíacos, poderosos, energizantes.


Não acho os sais. Meus sais, cadê os sais? Não acredito que sumiu. Mas quem usou? Eu preciso dele. Trata-se este de um primeiro encontro e sem os sais tudo pode se perder. Não sei se é o cheiro do jasmim ou o doce da baunilha que mexe com a minha auto-estima, só sei que preciso daquela bola se sais. Cadê? Cadê? Ah, ali. Achei! Graças a Afrodite.


Água quente na banheira, sais, muitos sais, muita espuma. Amos Lee canta enquanto o cheiro de jasmim preenche o banheiro. Vai ser ótimo, vai ser divertido, vai ser confortável. Ele tem um ar, uma coisa de diferente, além daqueles cílios longos, como que se tivesse usado curvex para moldá-los. Sinto isso. Saio da banheira, olho no espelho. Aaaaaah……….


O que é essa coisa vermelha na minha boca? Uma pereba! Mas ela não estava aí. Que pereba é essa? De onde você veio, pereba do mal, saia já daí! Alergia, será? Vai passar, vai sair. Cadê a minha base? Cadê meu corretivo? Que droga, pereba, isso são horas? Melhor me trocar, já são 19h10. E Amos Lee canta “Nothing is more powerful than beauty in a wicked world” . E eu acredito no Amos Lee. Mas essa pereba derrubaria qualquer um, mesmo num mundo mega strong , Mr. Lee, believe me ! Você não havia visto essa pereba quando compôs esse refrão.


Bom, o que eu posso fazer. Escolher uma roupa. Isso. Calça? Saia? Bombachas? O que? Para calça, está calor. Para saia, pode ser que eu venda uma imagem minha que não é real. Levando-se em conta que ele gostou de mim no meu jeans velho, quis me beijar quando eu estava dentro de uma coisa desbotada e que não disfarça meus pneuzinhos, bom, mas hoje é diferente, a gente vai jantar. Saia, isso, aquela, meio laranja, meio vermelha. Está calor mesmo. Saia.


Está ótimo, graças a Eros, a roupa deu certo. A pereba? Deixa eu ver… Resignou-se, está quase invisível. Está bom, tuuuudo bem. Eu gostaria de mim se estivesse saindo comigo hoje. Estou beeem melhor do que no dia em que a gente se beijou pela primeira vez.


Campainha. Chegou. Ai, que embaraçoso esse negócio de pegar em casa a primeira vez. Deve ser algum trauma, mas é tão, tão estranhamente embaraçoso… Ih, o que faço quando chegar lá embaixo? Beijo na bochecha, ‘bitoco’ os lábios, french kiss him ? Lá está ele. No portão. E ele vem primeiro, me beija de levinho. Não precisei decidir, aleluia. Cena de comédia romântica, noite estrelada de verão, coisa de fazer inveja a Hugh Grant. E que lindinho que ele está. Caprichou também, tá na cara. Não deve ter ficado desde as 9h pensando no que ia usar, mas gastou uns 15 minutos em dúvida entre a blusa cinza e a gelo-pastel.


O restaurante é moderno se descontraidamente sofisticado. A gente aperitiva, janta, toma um vinho. Eu janto um vinho. Credo, estou meio de pileque. Comi pouco. Comi salada de radiccio com pecorino quente. Sempre, sempre eu e a salada do primeiro encontro, culpada pelas coisas que eu digo só para me arrepender depois. Mas estou lúcida, absolutamente, o suficiente para vê-lo se mudar para a cadeira do meu lado e me lascar um beijão ensandecido. E seus cílios de curvex serão a minha perdição.


E agora? Ele vai me levar para casa, e eu? Chamo para subir? Mas, já? Ai, não… Outro beijão ensandecido. Assim não dá. Tudo bem, estou legal hoje, depilada, com a minha saia meio laranja, meio vermelha, mas a gente se viu duas vezes. Não dou conta dessa culpa de levar você para minha casa. Mais um beijo. Isso, vou cansá-lo com beijos aqui mesmo. Mas aqui é um restaurante. E eu odeio essa esganação em espaços gastronômicos.


A gente levanta, vai até o carro dele. E ele abre a porta. Eu sei, muito, mas eu adorei. Adorei ele abrir a porta para mim. Nossa, que coisa estúpida de carência isso. A gente pega o caminho da minha casa. Ai, meu Santo Antônio, o que eu faço com esse homem aqui no banco do motorista? O senhor viu que bonitinho ele? Ele trabalha com cinema, Santo Antônio, tem 31 anos, mora sozinho e é solteiro. Devo subir com ele? Não? Uma ex-namorada possessivo-controladora? Nãããããão, gay? Nãããão… Paranóia, muita paranóia. Aumento o volume. Ele ouve jazz. Perdição…


Chegamos. É, definitivamente essa é a guarita do meu prédio. E aquele é o meu porteiro noturno. É chegada a hora. Um beijo, dois. Não dá pra ficar de beijo na rua, feito adolescente no interior. Eu olho, com uma cara de quem está com sono, mas que está sendo controlado. O que eu vou dizer? Fico sonsa, sem saber que ele está prestes a salvar a minha vida. “Cinema amanhã? Pego você às 19h, pode ser?”. Sensacional. Sensacional double pack , já que o restaurante no qual a gente jantou foi ele quem escolheu e nem era um japonês, que eu gosto, mas que é muito óbvio para a primeira saída.


Desço do carro, entro no saguão do prédio. Preparo-me para dar uma olhadinha para trás, em direção a ele, para deixar aquele sorrisinho meio tímido, meio safado. E lá só está a caçamba com entulhos. Ele saiu. Mulambento, saiu antes de me ver entrar no elevador? Mas que pouco caso! E se um louco pulasse o portão e me seqüestrasse? Ele não ia nem saber! Ia passar aqui às 19h amanhã e necas de mim. Descaso! Falhou, amigo, falhou feio. Soluço. Preciso de água.


Elevador subindo. Que raiva dele não ter me esperado entrar! E eu não sei se gostei tanto, assim, dele. Será que falei algo de errado no último diálogo? Será que dei algum fora, será que falei besteira, será que ele percebeu que eu estou meio de pileque? Será que ele queria que eu o tivesse chamado para subir? Será que eu falei que não gostava de Woody Allen? Na verdade, por que raios eu não o chamei para subir?


Dane-se, não estou mais na idade para namoricos, primeiro encontro, seduçõezinhas mequetrefes de marmanjos criados, mesmo que seja um que trabalha com cinema e tenha cílios de curvex . Vou ter que começar a pular etapas e jogar no lixo aquela porcaria daquele sal de banho. Se ele tivesse subido, agora ele estaria aqui. E tudo ficou para um cinema, amanhã. Agora eu estou aqui, sozinha, nesse elevador, com soluço, e o Hugh Grant me vem à cabeça quando eu chego no 12º andar.

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