CLÉU ARAÚJO
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Enquanto isso, dançamos salsa

por: Cléo Araújo

04 DEZ

2007

O meu namorado é gay.

Lindo, engraçado, simpático, atencioso, carinhoso, cheiroso, barbeado e gay.

Gay até onde Deus deixou.

E todo mundo sabe disso. Não é segredo nem para sua vovózinha, que virou fã da Cher depois que ganhou dele um DVD no Natal passado.

O meu namorado é gay, um belo e verdadeiro exemplar de homossexual.

E é por isso que a gente se dá tão bem.

Ele não tem aquele grupo de amigos que prefere curtir uma masturbação grupal só entre eles, “os caras”, durante a final do Campeonato Brasileiro, por exemplo. Não existem “os caras”, aliás. Os amigos dele são todos tão ou mais gays do que ele próprio. E por isso são meus melhores amigos também. E eles não fazem nem idéia do que seja Campeonato Brasileiro. Os únicos eventos nacionais que acompanham são o São Paulo Fashion Week, a Mostra de Cinema e as maratonas da Sony.

Adoramos sair todos juntos, as bibas todas e eu, feito Priscila, a rainha da bicharada. Nosso programa preferido é jantar num restaurante modernets no centro de São Paulo. Eu – a única mulher – estou sempre rodeada daqueles meninos hype, que exalam seus perfumes de lançamento apenas no circuito Paris-Milão. Inéditos e exclusivos (do tipo que ainda vão levar cinco meses para chegar ao free shop).

A conversa nessa mesa é sempre alta e acalorada, mas não se ouve nenhum daqueles gritinhos esganiçados insuportáveis de mulher em estado de euforia ovulante. São vozes másculas. Às vezes, é verdade, numa escorregada de empolgação ao se falar sobre o Daniel Craig, por exemplo, até sai uma ou outra mais anasalada… Mas no geral, é um coro de vozes grossas falando sobre assuntos finos.

E eles me bajulam. E ficam idolatrando a minha pele bem cuidada durante todas as caipirinhas de tangerina que tomamos. Sabem dar valor a pequenas mudanças estéticas – um lápis de olho azul, uma franja nova, um hidratante matificado – que passariam completamente despercebidas pelos rapazes de fato e de direito. E isso me faz muito bem porque os elogios deles são descompromissados. Eles me endeusam sem ter qualquer intenção de me comer.

Com eles, eu quase sempre faço xixi na calça de tanto rir. É claro que minha pele só poderia ser ótima! Além de rir feito uma hiena, eu tenho o namorado gay mais lindo e divertido do mundo, estou sempre rodeada daquele séqüito de homens (lindos, simpáticos, atenciosos, carinhosos, cheirosos, barbeados blá blá blá), que pedem champanhe e ainda falam sobre sexo sem nenhum pudor cristão-católico mal resolvido. Eles me acham demais, super, gloriosa, praticamente uma Madonna e verbalizam isso com uma honestidade comovente.

Eles adoram o fato de eu SEMPRE ter assunto com eles, acham tão difícil encontrar uma mulher assim, que consiga falar de assuntos variados e não que fique só querendo saber quem é o ativo e quem é o passivo da bagaça… Gostam de falar sobre Almodóvar, sobre cortes e cores de cabelo e sobre os sapatos da Sarah Chofakian (eles amputariam o mindinho só para poder usar um sapato da Sarah). E o que é melhor: eles não me invejam. Não querem ser iguais a mim, cortar o cabelo igual ao meu, agourar a minha bolsa nova porque isso tudo é coisa de mulher. E eles são homens. Gays que gostam de ser homens. Meninos que dão muito valor aos seus pipizinhos, sim senhor.

O meu namorado é gay e não se frustra por se ver vestido em trajes quase masculinos. O máximo da ousadia dele é uma boina. Ou uma calça xadrez com um All Star cor de gema de ovo.

O meu namorado é gay, e a gente se dá tão bem, mas tão bem, que resolvemos morar juntos. Nossa casa é aconchegante e arejada. E eu não precisei colocar nenhum sofá de couro preto para agradá-lo. Ele adorou a mesinha de canto retrô, o abajur Art Deco, o baú tailandês, a mesa de peroba pintada de verde e rosa e o quadro da Sarah Bishop (aquele, da gordinha de lengerie).

Ele adora ficar conversando comigo enquanto estou na banheira. É ali que costumamos abrir nossos corações, contar detalhes sobre nosso dia no trabalho e falar mal dos tipos que não gostamos lá fora. O meu namorado é gay, e eu não preciso disfarçar que raspo a perna com gilete quando não deu tempo de marcar depilação. Uma das poucas coisas que ele acha (plasticamente) sexy numa mulher, aliás, é vê-la assim, raspando as pernas na banheira. E por isso ele me acha uma deusa.

O meu namorado é gay, astrônomo e solidário. Um de seus grandes sonhos é poder me levar para o maior observatóprio do mundo, onde assistiremos à explosão de uma supernova. Esse lado astrônomo cético é o seu lado mais macho, não fosse temperado pelo seguinte detalhe: ele imagina Moby tocando ao fundo. E ele é solidário: entra na TPM junto comigo. Compra barras de Lindt e devora quadradinho por quadradinho ao meu lado. É na TPM e sobre o ombro dele que eu gosto de lamentar o fato de que nós dois, pessoas maravilhosas, nunca conhecemos um homem que estivesse a nossa altura. Fosse um hetero, para mim, ou um homo, para ele.

O meu namorado é gay, viciado no filme “Contato” e na “Ally McBeal” (embora viva xingando e pondo defeito em tudo – como bom espectador de novelas que é).

Nunca precisei me enciumar daquela melhor amiga dele, que se julga mais íntima dele do que eu. Isso porque a melhor amiga dele, ah!ah!: sou eu!

Bom, mas a gente não se engana, não.

Nós dois sabemos muito bem que essa nossa vida, como ela é, é uma ilusão.

Que ser feliz é uma quimera.

Uma hora ou outra vai bater “aquela” falta em um de nós.

E aí pode ser que a nossa vida, tão calma e tão perfeita, acabe, assim, num susto, e por causa de um bofe qualquer.

Pode ser que, contra todas as probabilidades, nós nos apaixonemos por ele: esse homem que vai cruzar o nosso caminho e destruir a nossa paz.

Nós dois sabemos muito bem que essa possibilidade existe.

Concordamos com a inevitabilidade desse fato.

Mas a gente se ama, oras.

E felizmente, não somos apaixonados um pelo outro.

Ele não quer me levar para cama (a não ser que seja para fazer carinho no meu cabelo) e eu não quero dar para ele.

Por isso, a gente já combinou: quando a hora chegar não vamos fazer um grande drama, não. Talvez role um looooongo abraço, talvez algumas lágrimas, talvez Belle and Sebastian ao fundo. Mas nos afastaremos um do outro como no cinema, em câmera lenta.

Será difícil. A gente sabe. Limitar o nosso tempo conjunto a míseras cinco vezes por semana? Um martírio. Vai ser triste acumular assunto, rir sozinho dos acontecimentos mais idiotas do mundo (ninguém vai entender um ataque de riso por causa da letra de uma música sertaneja)…

Mas a gente sabe, é tão certo quanto o Big Brother começando em janeiro.

E vamos vivendo cada minuto intensamente. Morremos de rir, dormimos abraçados, brincamos de Imagem e Ação, enchemos a cara e choramos as mágoas um no colo do outro.

E, dançamos salsa, é claro.

Todas as quartas-feiras, religiosamente.

Lá na pista é quando eu sinto essas ganas de dizer para todo mundo: “o meu namorado é Gay. Gay com “G” maiúsculo! E ele dança. Dança muito. Dança como ninguém.

Dança como nenhum namorado macho jamais irá dançar nessa vida.”

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