CLÉU ARAÚJO
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Escapismo

por: Cléo Araújo

04 MAR

2011

Ele não nasceu às vinte e três horas e trinta e quatro minutos do dia 02 de maio de 1973, na maternidade Gota de Leite, afinal, onde mais se poderia não nascer? Não era um meninão, três quilos e oitocentos, cinquenta e seis centímetros, como nunca disse Dr. Túlio, o médico que jamais realizou o parto da Dona Beatriz naquela fria noite de outono que nunca aconteceu.

Ele não era um nenê cabeludo, não tinha uma covinha no queixo, nem sobrancelhas perfeitas que pareciam desenhadas a mão. Dona Beatriz não colocou nele um nome que havia lido num romance. Não foi com seu pai, Seu Osvaldo – que não usava costeletas e nem calças bocas de sino de chantum – que ele tirou suas primeiras fotos, só de fraldas, ele no colo do pai, ambos sentados em uma cadeira de balanço de junco, na varanda, onde não vivia Barney, o meio Pastor Alemão, meio Fila, de onze anos.

Ele não ganhou um irmãozinho quando tinha dois anos de idade, nem cacetou seu velotrol alaranjado nas paredes do corredor da casa alugada. Ele não ensinou para o irmão, que, aliás, nunca existiu, a famosa e ambígua “música do coelhinho”. Nem tomou bronca por soltar bombinhas na garagem do vizinho, que nunca morou lá, até porque lá não existia.

Ele não estudou em um colégio religioso durante todo o primário. Nem xingou uma freira de “Pinguim Careca” no segundo dia de aula da terceira série, só porque ela tomou dele a bola de capotão na hora do recreio. Não rabiscou (à caneta!) a carteira da sua “namorada”, a Isabele, que não usava botinhas ortopédicas brancas e nem tinha a letra mais bonita da classe. Ela, até por isso, nunca precisou passar uma semana inteirinha olhando para o nome dele rabiscado na sua frente, até a tia da limpeza poder vir passar um álcool do tipo que apagasse o que nunca foi feito.

Ele não aprendeu a tocar violão só por causa do Legião, nem abriu um talo no joelho do tamanho de uma manga na aula de Educação Física do professor Tadeu. Nunca andou de bicicross, nunca jogou River Raid no Atari, muito menos ouviu “Rock the Casbah” no seu Master System, com aqueles fones de ouvido gigantes, escondido no seu quarto. Nunca teve um pôster do Rush colado dentro do guarda-roupa. Ele nunca dançou de rostinho colado ao som de Tracy Chapman, nem ganhou um New Balance de presente de aniversário.

Ele não começou a matar aula de história e desenho para fumar L&M com os amigos atrás da padaria. Nem tomou um porre de pinga com Fanta na festa do Chupeta, que morava ali perto do clube. Nunca existiu um Chupeta. Nunca existiu um clube. E até por isso ele não precisou vomitar depois desse porre, que nunca aconteceu.

Ele nunca viajou pelo interior de São Paulo para visitar as tias em Bebedouro nem foi para Mococa participar de competições de natação. Ele nunca nadou, aliás. Nunca pegou um palito premiado de sorvete, nem morreu de rir assistindo Primo Cruzado.

Ele não viajou com sua turma do primeiro colegial para visitar o laboratório de anatomia da faculdade de medicina, nem botou os bofes para fora no Vicking do Playcenter, nem comeu uma pizza inteira de catupiri só para provar para os primos que era muito pop.

Ele nunca dirigiu uma mobilete nem enfrentou fila no cinema para assistir a estreia de “Os caçadores da Arca Perdida”. Não deu seu primeiro beijo na boca no banco de trás de uma Veraneio branca durante uma festa junina no sítio do seu tio em Jaguariúna. Aliás, que Veraneio? Que sítio? Que tio?

Ele não fez aulas particulares de redação para prestar FUVEST. Não votou no Mário Covas, não sabia cantar “Faroeste Caboclo” de cor e não foi no Gol branco que ganhou do seu pai quando fez dezoito anos, logo depois de ter passado no vestibular, que ele finalmente pegou a Ruth. Nem foi com esse mesmo Gol que ele buscou a Dani, sua colega do cursinho, para jantar rondeli quatro queijos e tomar um vinho na cantina italiana, nem a pediu em namoro no meio de uma colherada de torta holandesa.

Ele não raspou a cabeça quando entrou na faculdade, nem viajou com os amigos para Machu Pichu, nem terminou com a Dani quando a turma de amigos alugou uma casa de temporada em Juqueí. Nunca pensou em se casar com aquela menina gente boa da sua sala, de quem ele ria muito. Nem comeu a boazuda do Direito, de quem ele nunca ria nada.

Ele não foi trabalhar em uma construtora de estradas em Santa Catarina, nem foi fazer Mestrado sobre estruturas de rodovias no exterior, o que não lhe rendeu um belo emprego na Espanha, país dos seus avós paternos que nunca existiram.

No inverno, ele não usava uma jaqueta de couro marrom e nem se parecia com o Ethan Hawke. Não aprendeu a fazer paella nem começou a ver uns primeiros fios de cabelo branco nascendo perto das têmporas. Dona Beatriz e Seu Osvaldo nunca foram fazer uma visita para ele no Natal, por isso eles não aproveitaram a oportunidade para fazer uma agradável viagem pela Espanha, linda mesmo no inverno. Uma pena mesmo. Se Dona Beatriz tivesse existido, certeza que teria adorado. Ele nunca, nunca aproveitou uma folga sequer da empresa para vir sem escala para o Brasil só para ver seu sobrinho, a criança mais linda e inteligente que nunca existiu.

Ele não namorou Sue, uma inglesa que fazia aulas de espanhol com ele, nem Maitê, de Madrid, que trabalhava na mesma empresa. Nunca ficou triste nos fins dos seus relacionamentos, nem se anestesiou com single malt para ir dormir pensando… na Isabele, a namoradinha da pré-adolescência que nunca houve.

Assim, sem nunca ter sido, sua vida seguiu. Inexistentemente completa, como tantas, como tantas…

Ele nunca pediu desculpas por não ter vivido essa história toda. Nunca disse “eu sinto muito por minha ausência desde sempre, me desculpe”. Nunca…

Sem nunca ter sido, ele nunca foi.

Nunca soube o que deixou de significar ao não ter sequer se dignado a existir.

 

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