CLÉU ARAÚJO
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Feito vela

por: Cléo Araújo

15 DEZ

2006

Ele entraria e me veria encorujada num canto do sofá. A cabeça no meio dos joelhos, os braços envolvendo as pernas.

O vento intruso balança as harpas eólicas na janela, trás o cheiro da noite lá fora, me despenteia a parte da frente do cabelo e arrepia os pelos do meu braço.

A vela intacta, os guardanapos limpos, as taças sem sinais, um tempero que não revelou o sabor, a fome que não se matou, os pratos virgens, as almofadas sem marcas, uma música no repeat, gelo derretido, tudo revela a solidão que me faz companhia.

A noite é longa, e não passa. Minhas mãos percorrem o nada, os lugares vazios. São os mesmos vazios de ontem, mas que se acreditaram salvos da escassez porque se preencheram dele, se preencheram para ele. Meu vazio se fantasiou de repleto só porque ele estaria.

Mas ele não está. Não agora. Ele quase esteve. Quase veio. Quase ficou.

O vinho ressecado no fundo de uma taça grita: “durma, mulher!”

Mas cadê o braço? O abraço? Aquele, no qual eu me deixaria embrulhar, sem fitas, sem enfeites, sem purpurinas?

Ele não sabe, mas tê-lo por perto é algo tão dolorosamente fácil.

Eu fico ali, redesenhando cenas, enquanto o entorno dormente se encarrega de ficar quieto, deixando que eu me ludibrie sozinha.

Ele disse que me queria. Eu acreditei. Depois despejou todo seu perfume sobre mim, deixando-me embebida em seus vestígios. Como se isso fosse tudo… E como se tudo que poderia ser bastasse para transformar o nosso mundo.

Se ele me visse ali, encorujada no canto do sofá, a cabeça no meio dos joelhos, os braços envolvendo as pernas, talvez não me reconhecesse. Talvez me estranhasse.

Nesse momento sinto seu cheiro em uma almofada e penso na sua mão escorregando sobre mim.

Ah, eu quase prefiro não ter ouvido sua voz, quase quero nunca ter medido minha palma da mão na sua, quase quero não ter sentido a espessura do seu cabelo, quase quero não ter acelerado, aceitado, cedido, pedido…

Agora eu sou obrigada a admitir que existe gente como ele andando por aí. E a ignorância da existência de gente como ele andando por aí era meu único conforto para permanecer sozinha sem culpa. Isso talvez seja o que de mais valioso ele leve de mim não estando aqui agora.

A noite sem fim me deixa na condição de princesa decaída. Moro numa espécie de castelo que fui eu sim quem projetou, mas que não fui eu quem construiu. Do castelo, afinal das contas, eu sinto sempre como se pertencesse mais à masmorra, menos ao salão de bailes. Quase nunca ao salão de bailes…

Lá, da masmorra, eu até tento buscar fôlego. Mas a atmosfera rarefeita não ajuda. E a espera por um resgate fica cada vez mais cansativa.

Há as pessoas que passam, me avistam lá em cima, com uma mãozinha para fora da pequena janela, de onde eu abano discretamente um lencinho branco…

Mas elas vão embora, com medo e preguiça de subir.

Eu preciso de alguém que suba, me desate os braços, tire a minha cabeça do meio dos joelhos e acredite que dá para gente descer junto e colocar os pés no chão firme. Que é possível a gente andar de mãos dadas sem alguém ter que ser arrastado.

Hoje, nessa noite longa, é tudo só quase perfeito. Quase ingênuo. Quase desgarrado. Quase tudo. Quase nada. Quase um começo. Quase demais. Quase ele. Inteiro. Quase eu. Sem sono.

E eu estou suspensa, no meio das minhas coisas tão monotonamente perfeitas, esperando a minha vida começar.

Eu me levanto e acendo a vela.

E ela se derrete aos poucos.

Como se fosse eu.

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