CLÉU ARAÚJO
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Fica lá…

por: Cléo Araújo

20 SET

2007

Eu quase já consigo ter certeza do tipo de vida que eu quis. Que eu quero. E que provavelmente continuarei querendo, pelo menos até que algo maior do que eu me corrompa e me obrigue a mudar de idéia, convencendo-me de que não, eu não mando em mim coisíssima nenhuma.

Trata-se de uma certeza que vem se reafirmando a cada minuto que passa. E como um minuto é uma coisa daquele tipo que não volta mais, presto atenção no que quero hoje, para me lembrar disso amanhã, caso venha a querer outra coisa voluntária ou involuntariamente. Ou para que, caso a certeza reafirmada se transforme em projeto abortado, eu me lembre dele no mínimo como um simples sonho de criança boba.

Primeiro, quero um lugar onde eu tenha uma chance, mesmo que remota, de ver pelo menos uma estrela cadente uma vez por ano.

Se isso vai acontecer aqui, no meio dos prédios, ou lá no interior ou no alto do Himalaia eu não faço a menor idéia. Mas a estrela cadente uma vez por ano é algo que eu gostaria, sim, de poder apreciar na minha vida.

Além desse episódio específico e um tanto cósmico – confesso, algo que deve-se contar com um tanto de ajuda da sorte para se garantir – eu também quero uma rotina, toda especial.

Lá – seja lá onde lá for – ela começa com café feitinho na hora (coado ou expresso, tanto faz), leitura tranqüila dos meus cadernos preferidos do jornal, pão de canela, manteiga sem sal, vasinhos de lavanda decorando a mesa, leitura de umas duas crônicas inéditas e maravilhosas – uma de Clarice, outra de Rubem – um email de uma amiga amada, outro de uma editora interessada em me pagar para escrever bobagens, outro de um ex-amor e outro de um futuro-amor.

E isso só na parte da manhã.

Quero uma vida onde eu possa andar descalça na grama (jardim, pasto, quadra de tênis) lá pelas onze e onde possa assistir a cachorrinha se refestelar de costas no chão.

Quero entrar em minha cozinha rústica (que está dentro da minha casa vitoriana, do meu apartamento no centro de SP, da minha casinha de ruaem Espírito Santo do Turvo ou em uma viela de Luberon) e encontrar lá todos os utensílios dos sonhos de qualquer cozinheiro. É lá que eu preparo mais um almoço-laboratório, é lá que crio as delícias do meu buffet de pequenos eventos. A maioria da matéria prima é trazida dali mesmo. Tudo 100% orgânico e de fonte conhecidíssima: o meu quintal (horta suspensa na área de serviço, horta de verdade com magníficos 20 metros quadrados de extensão, pomar com ares de Flórida, canteiro da casa na Provença ou simplesmente um hortifruti sensacional que fica na rua atrás do apartamento).

À tarde, eu me sento à escrivaninha, que fica em frente a uma janela, que fica em frente a uma acácia (do quintal, da rua, do vizinho).

Lá, eu escrevo.

Saio um pouco lá fora (sacada, rua de asfalto, rua de pedrinhas provençais de calcário, rua de terra); sento-me perto da acácia com uma xícara de chá de cidreira.

Volto, escrevo um pouco mais. Depois, levanto, e resolvo preparar um doce. Sobremesa-laboratório.

Já no final da tarde, tomo um banho delicioso na minha banheira de cerâmica branca. Arrumo o cabelo e visto uma roupa mais quentinha… É que lá, seja lá onde lá for, esfria de noite.

Aí já é hora de preparar o jantar-laboratório, testar os novos pratos que serão degustados pelos amigos. Eles me visitam duas vezes por semana com essa missão. Uns levam um vinho branco, outros um arranjo de flores. É festa em casa – aquele lugar delicioso em Marília, Mendoza, Moema, Mairiporã, Marselha ou Mirandópolis – quase toda quinta-feira, quando jantamos, e quase todo domingo, quando almoçamos, naquela mesa montada no jardim (pasto, quadra de society, campo de golfe).

No frio, acendemos a lareira. No verão, curtimos a piscina dos meus pais, que moram no terreno vizinho. No outono, fazemos festa junina e tomamos quentão. Na primavera, celebramos o aniversário dos meus sobrinhos, que moram no outro terreno vizinho.

Trabalho bastante – escrevendo, cozinhando, escrevendo o que cozinho, cozinhando o que escrevo… Mas tenho certeza de que tenho os melhores trabalhos do mundo, assim mesmo, no plural. Não há Gisele Bundchen nem Paris Hilton que se sinta mais realizada do que eu.

Quando dá vontade, me arrumo toda, faço chapinha, passo lápis de olho azul e saio para algum lugar em busca de um ar cosmopolitano e um sushi chique. Quando não dá vontade, fico no meu canto, feliz por estar ali, porque aquela é a vida que eu quis.

Eu amo a minha vida, e parte dela é quase tudo isso, em doses homeopáticas distribuídas ao longo do ano. Os momentos que deveriam ser todos são controlados por comportas, que represam e fazem cada coisa boa valer tanto.

A vida que eu não quis não é a minha. É a que parece que eu deveria ter, caso deixasse.

A vida que eu não quis é a vida de quem me convence a ter a que eu não quero. A vida que eu não quis é a de quem acha que não sabe como ter uma vida que quer e não controla a vida que tem. É a vida que me faz de escritora de mentirinha, de cozinheira café com leite, de receitas carregadas de indecisões ingênuas e historinhas cravejadas de contradições; a da adulta adolescente, que dizem deveria estar preocupada com a mensalidade da escola do Nuno ou em dúvida sobre colocar a Elisinha no ballett ou na aula de piano.

Eu sei, eu sei qual a vida que eu quero, mas eu não sei onde é que ela está.

Sei que quero algo simples, que de tão simples, é raro e luxuoso.

Sei que eu não quero uma vida que me obrigue a ver tanta gente boa vivendo no automático; uma vida que não me obrigue a ver tantas cenas que me lembram que eu não moro numa cidade assolada pelo terrorismo, embora queiram que eu me sinta assim quase que todo o tempo. Uma vida que me permita andar menos de carro, de bota, ou em meio a meios aos quais eu não pertenço, fazendo coisas em que eu não acredito. Coisas em que eu não acredito mais.

Não quero mais abrir mão. De cachorro, de um banho de sol, da liberdade de ir, vir e ficar quando der vontade, pois todas as coisas que dependem de mim são minhas, estão sob minha responsabilidade e eu cuido delas da forma como achar melhor.

Não quero ser responsável por nada que não seja meu.

Talvez eu seja mesmo só uma garota do campo egoísta, ou uma urbanoide falsificada; um híbrido de ser humano que tenta se dizer caipira enquanto posa de mulher independente e feliz, embora incompleta, insatisfeita e indecisa.

Sei muito pouco de tudo, mas sei que quero a utopia da vida que não me desce enfiada goela abaixo por alguém que não poderia mandar em mim.

Quero a vida que plana suave sobre a minha existência e escreve a minha história.

Sei que quero a acácia, o futuro amor, a estrela cadente, o jantar-laboratório, o vinho branco e as flores.

Sei que quero construir a minha casa, seja lá onde for.

Já comentei como ela vai ser?

Linda, linda.

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