CLÉU ARAÚJO
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Invasores de sonhos

por: Cléo Araújo

20 JAN

2006

A gente fica lá, dormindo, e as coisas acontecem como se estivéssemos numa mistura de filme do movimento dogma, episódio de “ Whose line is it, anyway? ” e película do Kubrick. O cast vai aparecendo e, de um em um, os personagens vão dizendo e fazendo coisas de livre e espontânea vontade, coisas que não escrevemos no roteiro. Até porque não existe roteiro, tudo funciona à base da capacidade de improvisação cerebral inconsciente.

Eu não durmo pesado nem de jet lag. Meu sono é leve. E talvez por isso eu sonhe muito, muitas vezes, muitos sonhos na mesma noite. Não me lembro de uma noite dormida sem sonhar. Os sonhos são sempre nítidos, cheios de detalhes, uma festa junguiana. Muitos têm trilha sonora, poucos são classificados como pesadelo e mesmo sem o diagnóstico profissional de um analista, às vezes eu chego num porquê freudiano que é só meu, mas que me conforta e me convence de que eu não preciso de terapia.

Mas o que mais me chama a atenção nos meus sonhos é o tal do cast. Eu tenho um fixo nos meus sonhos: gente que invariavelmente instala-se na minha cama e se abriga no meu cérebro inconsciente. Esses invasores de sonho são uma gente que, vira e mexe, tenha ou não eu visto, falado com, lido um email de, assistido um filme estrelado por, aparece, na calada da noite, invade o meu sonho assim, sem convite.

Eu estou lá, na fase REM que, dizem, é o momento em que a gente sonha. A rua ainda está silenciosa, o livro está no chão, não falta muito para o despertador tocar, quando alguma coisa começa a acontecer. Ops, é um sonho.

Bom, aí tem um cara, quase um protagonista regular, que aparece umas três vezes por semana. Ele existe. E, sei lá, eu sonho tanto com ele que acho que ele sabe. E sinceramente, tenho a nítida impressão de que ele adora ser sonhado por mim. Sonho tanto que uma vez, quando nos encontramos (eu acordada), me surpreendi ao iniciar uma discussão com ele por causa de uma coisa que tinha acontecido em sonho. Em um outro sonho ele era meu marido, éramos um casal de meia idade e ele me abandonava para se casar com a Natalie Portman. Por mais que a troca fosse justa, fiquei um mês sem poder olhar para cara dele na vida real. Isso porque não temos muita intimidade, embora eu já tenha me sentido ligeira e conscientemente atraída por ele.

Semana passada, por exemplo. Sonhei que estava numa estação de esqui onde acontecia uma partida de futebol americano. Era noite, e lá estava ele. Avistou-me, em meio à multidão, foi até mim, ocasião em que percebi que ele estava vestido na armadura de um jogador de futebol americano. Entrou no jogo e tudo, acho até que ele marcou alguma coisa de ponto. E embora eu nem saiba se ele é bom de futebol, americano ou não, lembro-me que ele era o quarterback . E eu nem sei o que faz um quarterback .

Há uns dois dias a gente se encontrou de novo. Dessa vez, ele era um marronzinho do CET que falava italiano. Me multou, em italiano, porque eu tinha avançado o sinal vermelho na José Maria Lisboa. E depois me chamou para ir tomar um chopp, momento no qual ele deixava de ser o marronzinho de CET e, ao som de “Minha casa”, de Zeca Baleiro (com quem, aliás, eu também sonho muito), voltava a ser ele mesmo e a falar português. Eu acordei antes do chopp. Acordei com a música na cabeça e terminei o dia com a necessidade de um chopp na garganta.

Além desse cara – cujos sonhos, espero, sejam invadidos por mim para compensar – tem o meu amigo italiano de verdade. Que, estranhamente, sempre fala português nos sonhos. Já sonhei que estávamos numa dessas viagens para regiões cavernosas, tipo essas do Petar, para as quais eu nunca fui e para quais eu não tenho nenhuma intenção de ir num futuro próximo. Simplesmente estávamos lá, na caverna, com aqueles capacetes que têm lanterna. O sonho era só isso. Em uma outra vez, eu e ele estávamos numa sala de espera de um hospital, aguardando alguém que estava dando a luz. Eu acordei antes do bebê nascer. Mas a vez mais clássica foi o sonho em que eu estava com ele num balão. Qualquer coisa que eu tentasse falar no sonho se transformava na palavra “limousine” (“Malcovich, Malcovich, Malcovich”). E ele me dizia que precisava me contar um segredo. Antes que eu dissesse “limousine” mais uma vez e antes dele me revelar o segredo, eu acordei. Com muita raiva, e curiosa. Na véspera de natal ele me ligou, ficamos horas no telefone. Tinha certeza de que sonharia com ele naquela noite, para ele terminar de me contar o misterioso segredo interrompido. Não sonhei. Sonhei com outro, que só aparece quando eu estou dormindo fora da minha cama.

Essa é uma pessoa que não existe. Pelo menos, não ainda. Sonho bastante com ele, e quando estou dormindo fora da minha cama, é batata! Sonhei com ele no último final de semana. Na verdade, acho que sou meio apaixonada por ele. Quando ele aparece, eu fico vermelha, mesmo dormindo, porque sei que ele sabe que me desperta coisas. Ele é, acima de tudo, sexy. Tem bastante cabelo, um cabelo ondulado, castanho escuro. Na verdade, não consigo descrevê-lo muito bem. Nesse último sonho, estávamos debaixo de uma chuva torrencial, daquelas que molham, num lugar que parecia o colégio onde eu estudei até a sétima série. E justo nessa hora, quando eu estava indefesa, letárgica, com medo das freiras e parecendo um pintinho molhado, ele me beijava. Ele sempre me beija, não entra no meu sonho por qualquer coisa. Vai lá e faz seu serviço. Acordei fazendo bico. Fiquei pensando nele até segunda-feira.

E aí tem esse último. Que está atrapalhando sobremaneira a visita dos outros. Não reclamo não.

É o Batman. O Batman com roupa de Batman, o Batman sem roupa de Batman, o Batman com roupa de homem aranha (mas que eu sei que é o Batman porque ele não me engana), o Batman serial killer, o Batman meu chefe, o Batman piloto de avião, o Batman surfista, o Batman como Christian Bale, o Batman porteiro do meu prédio, o Batman no caixa da padaria, o Batman cobrando o meu pedágio, o Batman manobrando meu carro.

Claro que tudo começou quando Batman resolveu “begins”. Mas Batman “began”, Batman “continues”, não me larga mais sozinha, está impedindo que os outros personagens do elenco freqüentem meus sonhos. Ele está ganhando usucapião dos meus sonhos. Ele vive lá. E sempre, sempre, quando eu estou para ganhar um beijo dele, ele vira um morcegão e sai voando.

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