CLÉU ARAÚJO
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Mulher da vida

por: Cléo Araújo

08 JAN

2008

Na próxima vida ela queria voltar puta.

Já tinha pensado em tudo.

Em suas negociações com Deus ela fazia questão de deixar bem claro: “Quero ser puta! Verifique, por favor, se quem cuida dessa área é mesmo o Senhor, ó, eu Vos suplico. Senão, aguardo um sinal Vosso para que possa negociar diretamente com o encarregado”.

Na próxima vida ela queria voltar puta e tinha certeza disso.

Já tinha até pensado em voltar monja, patinadora do gelo, cachorro de madame, primeira dama americana, pensou até em pedir para voltar como neta de si mesma. Mas nenhuma das possibilidades lhe parecia mais agradável do que a de puta.

“Puta, putona mesmo, bem biscatão”, repetia, feito um mantra.

Não importava muito para ela que nas sessões de terapia de vidas passadas lhe dissessem que ela já havia sido uma cortesã no final do século XIX e que para evoluir ela não poderia retroceder nesse super processo espiritual. Para ela, do que adiantava ter sido puta no passado? Ela queria ser puta é no futuro! E se chamavam isso de retrocesso, pouco se importava. Involuiria como puta, mas involuiria feliz.

Por isso, para a próxima vida ela já sabia. Só voltaria se fosse assim, bem putanga mesmo.

Mas e se um dos responsáveis pelas reencarnações viesse com um cardápio de opções, querendo demovê-la dessa decisão impensada, ou dizendo que a ela não cabia essa escolha? Ai dele! Para ela não serviria de nada voltar como enfermeira, agrônoma, costureira, operadora de caixa, atriz, homem – ela refutaria tudo com o vigor de uma pré-cocote: “Puta, puta, puta! E nada mais! Senão, não volto! E pronto, acabou”.

Ia voltar puta e só ia dar profissionalmente.

Sairia com todos os tipos de homem e seu filtro para a escolha deles – filtro de uma puta – seria absolutamente profissional.

Acabaria se metendo em enrascadas perigosas e poderia até se arrepender algumas vezes por ter escolhido essa vida tão cedo (antes mesmo de ter nascido). Mas esse arrependimento passaria logo. Bastaria que ela se atentasse para a vida daquelas mulheres (ditas as “honestas”) que ela via da janela, arrastando suas pastinhas e guarda-chuvas enquanto fugiam da água levantada pelos ônibus no meio-fio depois de uma chuva braba. Ela saberia, então, ter voltado da única forma possível de se sobreviver nessa terra: puta!

Na próxima vida queria voltar puta, mas uma puta cibernética e sofisticada. Aliás, se pudesse refinar os detalhes da sua escolha no momento do retorno, diria que gostaria de voltar uma puta francesa, umafemme de mauvaise vie, uma mulher da vida avant-garde.

Ficaria o dia todo à toa, fazendo jus ao nome de “mulher de vida fácil” que a sociedade, tão previsível, lhe daria.

Lá pelas nove da noite, e só então, é que, vestida em um baby doll transparente de seda através do qual se veriam suas ligas douradas, abriria seus emails para checar qual o melhor lance daquela noite. Em meio às 256 mensagens recebidas, ficaria em dúvida entre a proposta do banqueiro com a cara do Gerad Depardieu ou a do político safado com ares de Sarkozy. Acabaria ficando com o primeiro, que parecia precisar tanto de sua companhia…

E lá iria ela, faturar seus 1.500 dólares com o sósia do Depardieu. Seriam três horas de trabalho pesado, duas garrafas de Cliquot e um orgasmo fingido (coisa que ela já vinha fazendo tanto na vida atual, sem que aquilo tivesse lhe rendido um só centavo que fosse).

Nessas alturas – depois de um tempo, quando ela já estivesse cansada da vida de puta (sim, porque toda vida cansa, enfim) – ela já teria juntado material suficiente para escrever um livro.

É que ela voltaria puta, francesa e escritora.

Escreveria um romance “baseado em uma história real”, bem cheio daqueles detalhes sórdidos, devassos e silenciosos que toda mulher não-puta acha que vai aprender ao mergulhar na vida de uma puta. Ganharia muito dinheiro às custas dessas bobalhonas que não sabem que se quiserem agir como putas têm que nascer putas, oras. E isso ela, que era esperta, já estava providenciando com uma vida inteira de antecedência.

Quando o livro fosse um sucesso e ela já tivesse ido dar entrevistas no Jô, na Oprah, na Marília Gabi Gabriela, no Serginho Groissman e no Letterman ela conseguiria vender os direitos para um produtor badalado de Hollywood. Algum roteirista faria a adaptação para o cinema e ela seria consultada até para a escolha do casting. Siena Miller faria o seu papel e Russel Crowe faria o milionário que se apaixonaria por ela e a pediria em casamento em Marselha (assim como aconteceria na vida real, só que no livro ela omitiria o fato de que depois de dois meses ela se separara dele e voltara aquela vida tão boa de puta).

O casamento seria o capítulo final do livro. E naturalmente a última cena do filme. Mas não a última cena da vida, que ainda iria longe depois que ela tivesse ficado com 50% de todo o patrimônio do milionário.

Na próxima vida ela queria voltar puta, e pensava nisso enquanto tomava chuva a caminho do estacionamento.

Voltaria puta e talvez se chamasse Madmoseille Georgete.

Na próxima vida ela queria voltar puta, ah, como ela queria. Estava cheia de passar por puta da vida. Queria ter uma vida de puta para resolver logo esse carma.

E se não desse para arranjar uma próxima vida (vai saber, ela não era lá uma das mais crentes)? Bom, nesse caso ela também já começava a pensar na possibilidade de providenciar uma putanicidade aqui mesmo, agora mesmo, no presente e por sua própria conta. Quem sabe, feito uma das metas para o ano que vem?

Enquanto seu lado místico e crédulo ainda falasse mais alto, ela continuaria apostando na vida que vinha. Já era meio tarde, afinal, para ela começar a se transformar em puta na vida em curso. Estaria em grande atraso tecnológico-meretrício perante as suas concorrentes.

Mas até a próxima encarnação ela ainda tinha tempo…

E pensava…

Queria voltar puta, francesa, escritora, cibernética, sofisticada…

E, de preferência, cafetina de si mesma.

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