CLÉU ARAÚJO
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O dia é hoje, a hora, agora

por: Cléo Araújo

14 NOV

2006

Eu sou uma só.

Posso adotar múltiplas facetas, usar vários cabelos, inúmeros modelitos, trocar de batom, de perfume, posso mudar até meu jeito de andar, dependendo se estiver de salto ou de rasteirinha… Mas continuo sendo uma. Não adianta.

Hoje eu estou aqui, com essa jaqueta jeans, esse “birote” mal feito no cabelo e sem anéis nos dedos. Eu ainda não comprei meu mini-brinco de ouro branco, do tipo que não precisa tirar da orelha. Um dia, se der, eu vou fazer isso, mas agora eu estou sem talão de cheque, tomando café e escrevendo isso tudo aqui, registrando essas coisas todas que me fazem pensar.

Estamos em 2006. Não em 2013. Eu tenho 29 anos. Ainda não tenho 30.

Hoje, eu estou aqui. Não é sábado. Não é feriado. É só hoje, um dia depois de ontem, um momento resultado de vários outros, acontecidos semana passada, ou outro dia mesmo.

Eu não moro em Paris.

Eu moro em São Paulo, ali, naquela rua, e me sirvo daquela padaria, não da outra, que eu vi na Revista da Folha, e na qual eu quero ir um dia tomar um café, quem sabe.

Eu não tenho filhos, não sou dona do meu negócio, e embora amanhã eu possa ficar triste, assim, de uma hora para outra, hoje eu estou zen.

Amanhã eu posso cair, esfolar o joelho, semana que vem, um dente pode doer, em 2007, o Coldplay pode vir tocar no Brasil.

Mas agora está chovendo. E toca R.E.M no meu micro (“When the day is long… And the night… The night is yours alone”). Todo mundo se machuca, eu sei. E mesmo que eu tenha medo de me machucar amanhã, hoje eu estou quase sã.

Eu fico aqui pensando na chance real de se viver o agora. Sem se prender em decisões tomadas ontem, muitas delas, não por mim, mas várias com impacto direto na minha vida, assim como todas as outras coisas que se sucedem no universo, em escalas tanto monumentais quanto subatômicas. Fico pensando na chance real de se viver sem se prender a decisões que serão tomadas no futuro. Afinal das contas, elas ainda não pertencem a ninguém.

Eu fico calculando a real possibilidade de eu não pensar no que vou fazer no Ano Novo, porque hoje não é o Ano Novo e nada disso está acontecendo.

E eu quero precisar saber do que está acontecendo agora.

Eu quero precisar lidar com o que está acontecendo agora.

Eu não quero nem pensar no que vou comer no almoço, porque agora eu não estou com fome.

Eu não estou com pressa. Nem letárgica. Eu não estou ansiosa, nem com tédio, eu só me sinto presa ao vindouro, ao que ainda nem é.

Por que raios essa mania de viver fora do que existe, de viver em suspense?

Quando a vida está aqui, se oferecendo, se exibindo toda, e me chamando?

Ela quer que eu solte o cabelo, ande descalça e relaxe.

E eu concordo com ela, tento soltar o cabelo e me soltar do mais tarde.

Pelo menos até que um amanhã de verdade chegue. E seja tão real quanto hoje. Tão urgente quanto agora.

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