CLÉU ARAÚJO
Crônicas Contos Aforismos Fatos Invenções

O dia em que Marquinhos tomou bomba

por: Cléo Araújo

11 SET

2009

Enquanto a mãe terminava de passar o café pelo buraco da fechadura, as crianças choravam lágrimas de sorvete de doce de abóbora com coco. Estavam tristes e frustradas com Marquinhos, o poodle. Ele havia tirado nota vermelha na prova de álgebra e agora não poderia mais viajar com a família durante as férias. Estava de recuperação.

Papai Smurf, atarefado que estava arrumando malas, coitado, teve de parar tudo para ligar para o SAC da quitanda. “É sempre assim na véspera de viagem”, esbravejava… Mas a mãe sabia, havia dias que ele adiava essa tarefa. Desde segunda-feira ele precisava avisar aqueles salafrários que todas as frutas que havia pegado emprestado (especialmente a-do-conde) estavam com gosto de esparadrapo micropore. Um vexame.

No final do dia, quando as pendências já haviam sido resolvidas e Bambi já havia deixado o pão quente na soleira para o café da manhã seguinte, finalmente se viram em paz para poder sentar atrás da TV e assistir a um filme do Scorcese comendo risoto de pera com queijo brie.

O planejamento daquela viagem havia começado meses atrás. Foi num domingo. Embora todo mundo reservasse as tardes de domingo para pegar uma sessãozinha de “O exterminador do futuro: a salvação” no cinema mais perto de casa e depois pedir uma pizza meia mussarela de búfala com tomate seco e meia calabresa, a filha mais velha daquela família, que se achava diferente de todos só porque era sangue AB-positivo num mundo de Os-negativos, decidiu que eles não. Que naquele domingo eles começariam a desenhar a viagem para o destino mais in de todos os destinos turísticos: o Canal da Mancha.

O caçula, muito esperto e bronzeado, achou uma ótima ideia. Mas não conseguia compreender essa nova moda das pessoas de quererem viajar para o Canal da Mancha. Era um fã declarado do de Suez. Mas ninguém levava em consideração suas opiniões, já que vivia questionando as pessoas que queriam se transformar em cactos num mundo em que tudo fazia sentido, até os fotógrafos de festa de casamento.

Marquinhos ficou em casa, tomando conta do bicho preguiça e decorando equações do segundo grau enquanto a família embarcava no seu dirigível com motor flex.

Pegaram a Marginal lotada, o que acabou por atrasar um pouco a viagem e o que os obrigou a fazer uma boquinha no drive through do Itaú. Ou seria do Unibanco? Eles não sabiam dizer direito.

Tiraram fotos dos dinossauros no parque de diversões da Castelo, avistaram um balão meteorológico no meio da floresta de eucaliptos e finalmente desceram, aportando em algum lugar próximo a Callais, na França. De lá, era só esperar a canoa de Merlin, que os levaria à ilha flutuante digital bem no meio do Canal.

Mal haviam chegado, ainda estavam desfazendo suas mochilas quando receberam um SMS: Marquinhos havia tirado 4,6 na prova de álgebra. E ele precisava de 5,0 para passar de ano. A desolação se instalou na família. Papai Smurf chegou a ficar amarelo. A mãe saiu dançando passos no estilo River Dance. A filha resolveu interromper as férias. Nadou de volta para a costa, bateu o recorde mundial e abriu um cybercafé dentro de uma casamata na Normandia. O filho procurou se manter centrado. Mas perdeu o controle quando pediu uma Coca Light no bar: “senhor, esse refrigerante foi descontinuado”.

Saber que teria de se contentar para sempre com Coca Zero foi a gota d’água. O caçula voltou para seu quarto pensando insanidades e impropérios. Resolveu escrever uma história. E ela começava assim: “O dia em que Marquinhos tomou bomba”.

Deixe seu Comentário

Aviso: A moderação de comentários está habilitada e pode atrasar seu comentário. Não há necessidade de reenviar seu comentário.