CLÉU ARAÚJO
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O gosto do cheiro

por: Cléo Araújo

08 FEV

2015

Gosto muito do meu nariz, pelo menos por dentro.

Sinestésico, acurado, intrometido. Vive mandando mensagens para o meu cérebro. “Esse é o cheiro de uma cor, de um dia, de uma frase, de uma música, de uma pessoa, de um lugar… Da máquina de costura da sua mãe, da casa da sua avó, de Vila Velha, do primeiro dia de aula, de festinha dançante, da capela da escola… Lembra?”

E eu me lembro, sim! É ele, marcando todos os eventos por seus aromas e todas as épocas com as cores dos seus cheiros.

Além disso, tenho fixação por nomes-fantasia de produtos com cheiro: amaciante “Crazy Melon”, gomas de mascar “Carnaval em Veneza” e desinfetantes “Buquê Romeno”…

O cheiro de piscina (que é o de um sabonete líquido que não existe mais), o cheiro de “boate” (uma mistura de Samsara com licor de menta), o cheiro da cozinha da minha avó (azeitona, tabaco e clara em neve virando suspiro no forno), o cheiro de final de semana (um caramelado do tipo bico de mamadeira, orégano e folha de revista nova) e por aí vai.

Os perfumes da minha vida, se expostos em uma longa prateleira, teriam rótulos e fórmulas inéditas; coisa minha, para passar atrás da orelha toda vez que eu precisasse me lembrar.

Teria um frasco da aconchegante fragrância “Marília”. Batizado por causa desse lugar onde eu nasci, o perfume seria uma mistura de bolacha de chocolate, café moído na hora e gloss de morango. Perfeito para usar em dias solitários, do tipo que parecem sem propósito, carentes e vazios.

Ao lado deste frasco, estaria o “Férias”. Com evocações de óleo bronzeador de coco, cloro de piscina e sorvete de limão, é do tipo que dá vontade de usar o ano todo, tanto no verão quanto no inverno, só pelo prazer do toque do seu cheiro quente na sua pele cansada e poluída pela rotina.

Tem também o “Infância”, uma mistura balanceada de roupa limpa, refoga na panela de ferro e sabonete Phebo (o preto). Esse reina absoluto como odorizador de ambiente. É leve e, por alguma razão olfativamente misteriosa, faz rir.

“São Paulo” já se caracteriza como um “eau de parfum”; forte e denso, tem um “Q” de torta de morango saindo do forno, carro novo e manjericão; “Rio de Janeiro” já fica na categoria “eau de toillete”; bálsamo suave que mistura a lima da pérsia com o abacaxi e a carambola. Cítrico, um cheiro quase amarelo.

“Lancheira” já é desses que criança adora, porque mistura Coca Cola, pão de leite e plástico novo. “Escola”, aliás, é outro que agrada muito os gostos infantis e desperta todas as memórias possíveis com suas conotações de prova feita no mimeógrafo, borracha cheirosa e pão doce.

“Saudade” é carregado em notas de gin, vickvaporube e M e M de amendoim.

“Paixão”, ah, paixão… Usado com parcimônia, cai tão bem… Notas de canela, nozes, damasco, páprica e gengibre.

“Cinema” e suas partículas de bala 7 Belo, refrigerante com açúcar e veludo vermelho. Cheiro de domingo, de pastel de brigadeiro, cheiro de chiclete que não cabe na boca.

E ainda tem um, mais do que especial – desses que são feitos em edições limitadas – para o qual ainda não dei nome.

É o único que faz meu nariz falhar. Toda vez que sinto esse cheiro, a memória entra em pane. Procura, procura, procura, mas as evocações são tantas, tão poderosas e tão intensas, que o circuito se perde em sensações, se esquecendo dos fatos.

O briefing, para quem quiser batizar esse perfume, é o seguinte: trata-se de uma fragrância docinha e calma. Perfeita para se usar depois do banho. Se existisse em um frasco, seria na sua nuvem de gotículas que eu gostaria de poder mergulhar minutos antes de deitar na cama, onde deixaria essa mistura de dama da noite, iogurte de morango e terra molhada.

Dormiria com esse cheiro, um cheiro de acarinhar o mundo. Cheiro de buzina muda, de xingamento calado, de energia azul, mas sem esoterismos. Eu faria incensos com sua essência, queimaria vários palitinhos em casa e no trabalho, porque é um cheiro de quem quer ir para frente, sem rancor nem ansiedade.

Dela, eu faria um xampu, um hidratante e um sal de banho. Nela eu submergiria quando não quisesse memória nenhuma, quando quisesse só um cheiro de abraço, de beijo, de colo. Ela eu injetaria na ventilação dos aviões e nos saguões dos bancos.

Dela seriam os cheiros das memórias futuras.

Das coisas que ainda estão por vir.

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