CLÉU ARAÚJO
Crônicas Contos Aforismos Fatos Invenções

Quando o corpo pede para chorar

por: Cléo Araújo

15 JUL

2005

Parece que o corpo sente necessidade de chorar. De soltar de dentro os sais minerais e a água que se acumula em nossos olhos pela falta de emoções. Quando a vida está média, o corpo não chora. A gente nem sua. Fica retendo líquido, engordando a alma, que fica ansiosa pela erupção iminente. Cedo ou tarde ela eclode, num turbilhão de lavas de água e sal, que simplesmente quer sair de dentro da gente. De verdade? Há que se agradecer a qualquer tipo de emoção que provoque esse tipo de dilúvio.

Eu não sou uma daquelas garotas que gostam de bichinhos de pelúcia. Já tive meu tempo, mas há mais de dez anos só os ganho de presente. Há dois dias, numa vitrine de uma loja de brinquedos, uma zebra, rosa e roxa, chamou a minha atenção. Eu sequer costumo olhar em vitrines de lojas de brinquedos, o que me levou a crer que a zebra rosa e roxa me chamou, me levou pra dentro da loja e me fez passar o Visa Eletron no valor de R$ 39,00 para levá-la para casa comigo. Conforto barato, diga-se de passagem. Conforto para mim e para zebrinha, que ficou mais em conta do que uma boa garrafa de vinho, que me esquentaria igual, mas que não poderia dormir abraçada comigo.

Dois dias depois da compra da zebra rosa e roxa, minha cachorrinha se foi. Morreu. Oito anos depois de aventuras e desventuras vividas junto de mim e de minha família (porque de mim ela não era nada, a não ser irmã, já que minha mãe, essa sim, era a dona da bichinha). Foram oito anos. Parece pouco tempo. Mas, na verdade, eles contam uma história. Pelo menos contam um pouco da minha.

Minha cachorra (o nome dela é Sheeva, e eu prefiro chamá-la pelo nome para assim poder prestá-la o tributo que merece) chegou em casa quando eu estava com 20 anos. Ela acompanhou os meus últimos anos de faculdade, as noitadas regadas a café na copa da minha casa no interior, quando estudávamos para as provas de medicina legal. Ela estava lá, de testemunha atenta, quando os namoros começaram. E quando eles terminaram também. Fez vigília no cercadinho onde vivia antes de conquistar o aconchego de uma caminha no pé da cama dos meus pais, quando estes não estavam em casa e era dela o controle sobre mim e minha irmã caçula. Soube chorar quando lhe faltava companhia, rosnar quando alguém lhe pisava no calo, fazer graça quando todos precisavam de uma risada. Natais, carnavais, páscoas e anos novos que ela compartilhou com a gente. Casamento, bodas e mudanças que ela acompanhou, sempre atenta, sempre pronta para dar aquele carinho que raramente a gente consegue despretensiosamente de um ser humano.

Sim, eu sou uma pessoa cachorreira. Gosto deles, eles me fazem falta nesse apartamento apertado. Mas falta mesmo vai me fazer a Sheeva. Que simplesmente estava lá. E que agora foi latir e fazer as graças dela em algum outro lugar, aquele que eu faço força pra acreditar que existe.

E se por um acaso existir, de verdade, primeiro, eu torço para que ele também receba os cachorros. E aí, talvez, eu faça questão de pedir ao ‘encarregado’ que me faça voltar para terra um cachorrinho, mas um cachorrinho tipo a Sheeva. Grande, simpático e compreensivo. Meio diferente de tudo aquilo que eu sou e que eu fui, pelo menos até agora.

Cora Coralina, poetisa goiana, esquentava um pouco da sua criatividade à beira de um tacho de cobre, cristalizando doces e fazendo poesia. Eu resolvi acabar essa noite com uma zebra de pelúcia rosa e roxa e à beira do forno, assando uma torta de chocolate. Como sempre, a cozinha, depois do laptop, acaba sendo o meu divã. Dificilmente há algum tipo de dor que não se cure com um pouco de farinha e um pouco de calor, nem que seja aquele que vem do forno. E assim eu posso curar a saudade da minha cachorrinha que se foi, sem precisar segurar as lágrimas que estavam pedindo para sair.

Deixe seu Comentário

Aviso: A moderação de comentários está habilitada e pode atrasar seu comentário. Não há necessidade de reenviar seu comentário.