CLÉU ARAÚJO
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Sal e pimenta a gosto

por: Cléo Araújo

24 OUT

2007

Não era uma banana.

Era uma ex-banana.

Sua cara não era mais a mesma. Não servia mais pra nada. Nem para comer amassada, nem disfarçada com muita aveia e canela, nem para uma farofinha, nem para uma torta. Para nada mesmo.

Sua cara de banana velha a deixava assim, sem salvação, sem futuro, nada de vida lhe havia sobrado.

O aspecto, outrora amarelo ouro, agora era quase completamente negro.

Faltava pouco, ia ter cara de berinjela subnutrida.

Resolvi descascá-la, olhá-la por dentro, numa espécie de autópsia bananística.

Precisava descobrir sua causa mortis. Poxa, ela ainda era nova para ostentar aquela figura triste ali, na fruteira, onde os primeiros mosquitinhos (os de banana, obviamente) começavam a chegar.

Daí, a surpresa.

Por dentro Daquela coisinha feia, aquela ex-banana com cara de berinjela fina vivia, sim, uma banana em sua plenitude. Uma banana branquinha, tenrinha, absolutamente viva e sem manchas.

Como aquilo era possível?

Meu primeiro ato foi jogar fora rapidamente a sua casca preta. Sem vestígios, ninguém suspeitaria que a banana, agora despida, quase fora desenganada pela cozinheira incrédula, embora piedosa.

Depois, resolvi picá-la em fatias, e a banana recém ressuscitada se transformou em pequenas e delicadas versões de si mesma; como num passe de mágica e associada a alguns outros companheiros de geladeira, ela – que sempre fora banana – terminava assim a sua missão na terra. Virou risoto, algo com que sonha todo legume e toda fruta esquecidos no fundo de uma gaveta de geladeira.

Lá estava ela, no risoto, batizado de “Risoto de banana ditosa com castanhas de caju”.

Foi comido com os olhos, pois além de delicioso, surpreendente: um risoto não era um prato onde as pessoas esperavam encontrar uma banana.

Ainda mais uma banana como aquela, do tipo que ressuscitou.

 

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Eu sempre achei que em alguns pratos não se deveria mexer.

Tudo bem inovar um salmão, tudo bem misturar as ervas do leste com as ervas do oeste, tudo bem fazer purê de banana da terra.

Mas… Os clássicos, chef nenhum deveria ter a audácia de adulterar (a menos que se trate de uma banana que tenha voltado dos mortos, é claro).

Alguns excessos da cozinha urbana (supostamente globalizada, fusion e cosmopolita) acabam forçando o cozinheiro a socar a sua criatividade feito alho num pilão; ele deve extrair o novo, temperar o inédito, assar o impensável, refogar o original. Às vezes, dá certo, e todo mundo festeja. Às vezes, nem tanto…

Por exemplo: como reinventar uma feijoada, um pernil assado, um leitão à pururuca, uma pamonha, um curau, um doce de batata doce, um pé de moleque, uma goiabada cascão, uma ambrosia? Como salpicar toques orientais em um tutu de feijão? Como colocar curry em um feijão rosinha? Como, me diga como, carambolizar um arroz doce? São praticamente crimes gastronômicos, pelo menos para os paladares mais saudosistas, que só gostam de brincar de ousar com aquilo que não faz parte do seu repertório culinário sacro, virgem e intocado.

Sempre achei que deveria haver limites para as fusões gastronômicas. E olha que não sou uma reacionária da cozinha: uso canela em carne moída, veja bem. Mas um limite tímido, do tipo que inibisse picadinho de carne bovina em arroz indiano, pupunha com queijo brie ou bolinho de bacalhau com cara de sushi, seria bem-vindo.

Mas deve ser implicância, ou deve ser por causa de algo que eu vi agora há pouco.

Foi lá, em um desses restaurantezinhos da moda.

Onde se servia canjica… “Puxada” no mel e no alecrim.

 

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A minha carne estava pronta, com seus brotinhos de feijão refogados na manteiga e suas kumquads saborosas esperando para se misturar ao caldo de vitela, culpado, aliás, por qualquer sucesso que aquele prato viesse a fazer caso fosse degustado por terceiros.

Ao final de todo o trabalho culinário, eu sei que me sentia realizada. Uma verdadeira Babete. Mas também sentia meu corpo com aquele estresse típico de primeiro dia de aula no pré-três. Que medo de fazer uma cagada nada gourmet, de jogar açúcar no ‘preparado’ ao invés de sal, de queimar a mão no cabo da panela, de derrubar as coisas no chão, de engasgar e precisar ser socorrida pelos desconhecidos…

Mas, tudo correu bem e eu abracei o chef no final.

Fui embora com a tupperware embrulhada num paninho, cuidando para que os solavancos do metrô não me obrigassem a derrubar molho de vitela no meu vizinho, rapaz de muito pouco perfume.

Estava ali, sentadinha naquele banco do metrô, e teria 16 estações até chegar ao meu ponto de descida. E foi ali, em algum lugar entre Pasteur e Rue du Bac, que eu me peguei.

Eu tenho 30 anos. E hoje eu cozinhei na frente de um chef francês, que provou da minha comida e me abraçou. Fazer 30 anos é a verdadeira emancipação de um ser. Cozinhar para um chef é, então, a extrapolação absoluta de qualquer tipo de emancipação. É como se agora eu fosse Eu, enfim. Ai, como eu queria poder ficar me sentindo assim para sempre.

Ali, com aquela tupperware no meu colo, foi como se minha vida estivesse sendo finalmente exibida em uma tela LCD de 52 polegadas.

Tudo antes daquilo era a minha vida, sim, mas apresentada sem a devida atenção, imagens um pouco distorcidas para poderem caber numa tela menor do que deveriam.

Percebi que precisava consertar o botão widescreen da minha vida, que estava quebrado.

Alguns precisam de terapia para descobrir isso.

Mas eu precisei de carne de porco, mel, moyashi, sal grosso, extrato de tomate e o melhor caldo de vitela de todo o planeta.

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