CLÉU ARAÚJO
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Talvez eu seja só uma garota do campo

por: Cléo Araújo

16 SET

2006

Eu ouço Moby. Adoro Jorge Drexler. Mas confesso que os acordes melódicos do violino de uma música country mexem com qualquer gene aqui dentro de mim. Admito que às vezes me pego prestando atenção até numa baladinha sertaneja de tempos mais passados. Talvez seja a lírica, talvez sejam as histórias chorosas e bucólicas que levam quem é do oeste de volta ao oeste, não sei. Deve ser assim em qualquer oeste do mundo. O Oeste deve ter uma força maior do que o Leste, o Norte e o Sul. Talvez porque, numa visão romântica, ele guarde o pôr do sol, que é uma das coisas mais lindas que há para se ver.
 
Só sei que, toda vez que me permito ser eu mesma, me descubro assim, uma garota do campo, daquelas que puxam o ‘r’ quando menos se espera e gostam de churrasco e cerveja, por menos cult e fino que a combinação possa parecer.
 
Nada em específico faz de mim uma garota do campo, mas, ao mesmo tempo, tudo de genérico em mim me faz assim. Eu gosto da despretensão do sábado à tarde. Eu gosto do barulho da cigarra. Eu curto o vidro do carro aberto no passeio da sexta à noite pelas ruas da cidade. Eu contemplo a saída de bar em bar, sem ter que pagar dez reais pra cada um dos manobristas, até porque eles não existem e sempre tem uma vaga esperando por mim a dez metros da entrada de qualquer lugar.
 
Eu sinto falta da cama, do som do grilo lá fora, da chuva de meteoro, do vaga-lume extinto nessas terras de cá. Eu sinto falta de cruzar com pessoas quando vou pegar um copo d’água na calada da madrugada, do se preocupar em não fazer barulho para não acordar ninguém, do almoço de domingo. Deve ser por isso que eu comecei a cozinhar, especialmente nesse dia da semana.

O latido do cachorro que eu conheço, a fuga para o cinema onde só passa filme infantil no mês de julho, o dormir na casa da amiga, o jogo ‘Imagem e Ação’ naquela noite fria onde nada mais se restava a fazer, o fogo da lareira em junho, o biquíni de elástico gasto que eu só podia usar naquela piscina, o cheiro do amaciante, a musiquinha do caminhão de gás, a manicure da esquina, a missa que eu nunca freqüentei, as festas nas chácaras dos amigos em substituição aos bares, boates e festas vips. A professora da pré-escola, com quem de vez em quando eu esbarro quando ando pelo ‘comércio’ num feriado prolongado qualquer. O mural de fotos do meu quarto, sozinho e tão cheio de mim.  Essas coisas todas, enfim, que contam a minha história, a minha vida, lá, por aquelas bandas.
 
Olho aqui em volta. Eu sei sim que está aqui muito do que eu sou hoje, aqui vive a eu adulta. Aliás, aqui a eu adulta nasceu. Quase tudo de mim, para ser honesta, está mais aqui do que lá. E é verdade, eu sou sim essa aqui, ok, a metrópole me venceu. A parte country ficou lá atrás, a muitos e muitos quilômetros de distância. É que de vez em quando, só de vez em quando, eu me permito a visita.
 
Se um dia tudo desaparecer, numa nuvem de fumaça e num passe de mágica, o que vai sobrar é justamente essa parte. Essa, que é a minha essência, a parte amalgamada do meu ser. E dessa ‘caixa preta’ de mim vai se extrair só o cheiro de pólen, a raiz da cidade que, por menor que seja, cresce sem espaço aqui dentro. É que nesse lugar que talvez só exista na minha cabeça, sim, é verdade, como em poucos outros, eu me permito ser um pouco mais eu mesma, com tudo de caipira que isso possa significar.

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