CLÉU ARAÚJO
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Vida antes da beca

por: Cléo Araújo

26 MAR

2008

Eram tempos em que eu não tinha idéia.

E era muito feliz assim.

Tempos em que o amanhã não fazia parte do futuro. Amanhã era só um dia potencialmente bom. O futuro era algo que só aconteceria quando o futuro chegasse. E isso ainda estava longe de acontecer.

Também, não tínhamos que lutar contra a ditadura (mal e mal uns tinham pintado a cara no impeachment pra fazer uma graça), não participávamos do D.A. e não fazíamos estágio no escritório de professor nenhum. A gente praticamente só comia, bebia, fumava, falava e ria. Ria muito.

Assistíamos às aulas apenas em situações especiais. Geralmente quando se descobria uma fraude no exame da OAB e a gente precisava e queria ouvir a opinião de algum professor a respeito. E também quando ouvíamos dizer que algum professor aplicaria uma avaliação surpresa valendo a nota do bimestre. Éramos meio vagabundas, sim, mas não suportaríamos o peso de uma depê nos ombros.

Na maior parte do tempo, estávamos mesmo é tomando uma cerveja e fumando um Marlboro (vermelho) no boteco que ficava estrategicamente localizado a 20 metros do portão principal da faculdade.

Era lá que tinha também o PF mais delicioso do mundo. Ah, aquele PF às onze da noite: frango grelhado, arroz, feijão, salada de alface, tomate, farofa, coca-cola normal e, é claro, mais uma cerveja.

E aí era mais um cigarro.

E a coisa quase que não tinha fim.

Tempos de gula, aqueles… Até os beijos eram vorazes! Várias eram as marcas de chupões – dessas, que não se fazem mais depois dos vinte – deixadas nos cangotes… Lencinhos amarrados no pescoço das meninas e rapazes de gora rulê em março eram clássicos da vestimenta universitária.

Eram tempos ditosos, em que se falava menos e se beijava mais.

A faculdade no interior tinha dessas coisas deliciosas. Festas, muitas, várias delas fora de casa, em cidades espalhadas pelo oeste. Eram sempre acontecimentos badaladíssimos, ainda que se tratasse, na maioria das vezes, de uma cidadezinha de baixa densidade demográfica, com população nunca além de 2.000 habitantes – o que significava que quase a cidade toda estaria na festa.

Foi em uma aventura dessas que ficou gravada para sempre nos registros do nosso tempo de estudante a história que vou contar.

Fomos, eu e mais uma amiga, a uma dessas festas em uma cidade vizinha. Ficaríamos hospedadas na casa de uma terceira; esta, muito, mas muito mais ajuizada do que nós (ela assistia às aulas, não bebia, não fumava e não carimbava o pescoço de ninguém – pelo menos não que a gente soubesse).

Fomos as três para a tal festa, mas a amiga séria voltou antes para sua casa, que era também a de seus pais. Eu e a segunda mau-elementa voltamos bem mais tarde, e com aquela larica típica de pós-balada, sonhando com um xis-egg-bacon-salada com maionese extra.

Mas a amiga pura e magra nos recebeu no escuro, aos sussurros, nos disse adeus e nos colocou num quarto todo arrumadinho e quentinho. Sem água e sem pão.

Lá pelas tantas, minha comparsa desistiu. Cedeu aos grunhidos do seu estômago. Era chegada a hora de cometer um crime. Ela estava determinada a saquear a geladeira daquela família de bem. Custasse o que custasse.

Eu, embora cúmplice, fui designada ao posto de tocaia. Fiquei só esperando ela voltar. Confesso, o fiz com apetite de filhote na savana.

Os poucos segundos entre a sua partida em direção à cozinha e o seu retorno me fizeram imaginar o que poderia ela trazer para saciar a nossa fome… Um pacote de bolacha de chocolate, um iogurte, um Charge?

Mas qual não foi minha surpresa quando a vi de volta com nada mais, nada menos, do que uma coxa de frango nas mãos! E uma foi pouco. Ela voltou ao lugar do crime para buscar a segunda, que jazia perneta naquela travessa que tinha todo jeito de almoço do dia seguinte, pré-preparado pela pobre mãe da amiga anfitriã. Comemos as duas coxas e dormimos felizes.

Na manhã seguinte, partimos rapidamente e em silêncio. Nunca soubemos da repercussão daquele almoço de domingo. Nossa amiga séria nunca comentou o assunto.

Essa história – em mais uma noite de cigarro, cerveja e PF – foi classificada pelas outras como furto, sim, mas com uma excludente da ilicitude indiscutível: “estado de necessidade”. Tratava-se, pois, e segundo amiga mais aplicada, de “crime famélico”. Seríamos sumariamente absolvidas qualquer que fosse o tribunal.

Mas tudo isso, todo esse desprendimento da vida que só tem quem ainda tem muito tempo entre hoje e o futuro, acabou numa noite, num baile, que nem de longe foi tão animado quanto as noites no boteco a 20 metros do portão da faculdade.

Ali, onde se festejava o fim de uma era, o filé ao molho madeira, o cuscuz, o ravióli de nozes, o vinho, o champanhe e o fim, que de repente chegou e deu um tapa na nossa cara. Foi o dia em que a gente começou a ficar séria. Aos poucos, nos transformaríamos em pessoas que jamais, jamais saqueariam a geladeira alheia.

Nessa última noite juntas, comemos, bebemos e fumamos, como sempre. Mas choramos mais do que rimos. E falamos pouco.

Quando a noite terminou, uns comiam ravióli frio com palito, outros se abraçavam em meio às lágrimas e alguns casais estranhos se beijavam, provavelmente deixando suas últimas marcas de chupada no pescoço um do outro como souvenir.

A vida nos afastou e nos colocou em diferentes cidades, a maioria delas com mais de 2.000 habitantes.

Hoje, numa conversa no MSN, nos encontramos.

Chatas, velhas, ranzinzas e frescas.

E a história do furto das coxas de frango, é claro, surgiu. Rimos de novo. Sentimos saudade. E chegamos a uma só conclusão definitiva sobre tudo: comeríamos até coxa de frango crua se pudéssemos reviver um segundo daquele tempo, que fosse.

Aí tomaríamos uma cerveja.

Fumaríamos um cigarro.

E a coisa quase que não teria fim.

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