CLÉU ARAÚJO
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Voz passiva

por: Cléo Araújo

03 DEZ

2010

Cheia de charme, sujeita a mudanças de humor e frescurinhas mil.

Ah, a língua portuguesa, espetacular e imperial. Somos tão poucos no mundo a utilizá-la que causa certo orgulho privé contar com ela.

Começamos balbuciando pá pás e má más, monossílabos tônicos repletos de significado. Depois, partimos para uma singela e, no entanto, essencial e quase semiótica repetição: A de amor, B de baixinho, C de coração… Escrevendo nos cadernos de pautas cor de rosa, aprendemos a descer a perna do “p” e a subir a do “d”. Vem a separação das sílabas, um “r” para cá, outro “r” para lá. Descobrimos os ditongos e gravamos em nossa mente, de uma vez por todas, um “m”, com todas as suas três pernas, antes de todo “p” e de todo “b”. De repente, estamos lá, elegantes e apoteóticos, numa oração coordenada sindética conclusiva.

Não é a toa que o português é assim, fofo. Temos um indicativo e um subjuntivo só para nós. Temos três tipos de pretérito. Temos o “lhe”, digrafamente poético. Temos palavras pequerruchas formadas por diminutivos em “nh” e “jotas” soando como “xis”. Linda, essa língua, mais que demais. Ganha em verso, ganha em prosa. Fica atrás de uma ou outra expressão em francês que fazem pensar em gotas de suspiro saindo do forno. Eventualmente, perde em praticidade quando em confronto com um “the”, genérico, ou com uma estrutura temporalmente autoexplicativa e muito mais que perfeita feito “I have traveled to Bahia”. Mas mesmo assim, aposto que tem alemão por aí trocando “bier” por “cerveja” sem pestanejar. Pestanejar… Um verbo para os cílios… Quem mais tem?

Por isso tudo é que não consigo deixar de lamentar. Tão linda, tão maltratada. Não há acordo, bom senso ou alfabetização de colégio interno montessoriano dirigido por Machado de Assis com José de Alencar como bedel que dê conta de explicar as barbaridades que a gente lê por aí nas redes sociais. O que assusta é essa aparente e triste impossibilidade de existência saudável entre as línguas, a velocidade e democracia da informação na Internet e o absoluto pouco caso do interlocutor com a forma como usa o idioma no qual se comunica.

O que me tirou do silêncio (que eu mantinha por saber o quão pedante é fazer isso – logo eu, incapaz de consultar um dicionário – Seção? Sessão? Cessão? Intuição.), foi o erro apontado por um amigo, outro respeitador da língua. Ele deu de cara com um pomarolítico “me polpe” no Facebook. ME POLPE. M-E-P-O-L-P-E. Uma súplica, e isso não é só o que fica claro. Fica claro também que não se trata apenas de uma troca do “u” pelo “l”. É a prova da existência de uma pobre alma que, além de nunca ter guardado dinheiro na “polpança”, nunca leu nem um gibi sequer em toda a sua vida.

Honestamente, não sei. Soa-me um tanto intransigente dizer que não me agrada a ideia de que “me polpens” estejam criando uma nova língua. Só sei que sinto que é assim, com a vermelhidão e a viscosidade de uma massa de tomate, que nosso idioma, pobre dele, sangra com a dramaticidade de um adjunto adverbial de modo: hemorragicamente.

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