CLÉU ARAÚJO
Crônicas Contos Aforismos Fatos Invenções

Widescreen

por: Cléo Araújo

11 DEZ

2008

Os créditos aparecem numa fonte daquele tipo que sugere texto escrito a mão.

Fotos são projetadas em câmera lenta, decoradas por uma arte que passa a idéia de mural de feltro verde, presas por tachinhas coloridas. Na primeira, ela se põe de braços abertos no meio de um campo de flores amarelas, quase gigantes. Depois, ela e a irmã, crianças, as duas com o nariz salpicado de farinha e chapéu de mestre-cuca; ela sobre a bicicleta, braços para o alto e cabelos ao vento; ela com amigos em volta de uma fogueira, xícaras emanando uma fumacinha aconchegante; ela no mercado fluvial de Bancoc; ela fazendo um sinal de jóia na porta do avião, segundos antes de saltar de pára-quedas; ela, templo budista tibetano, vestida no estilo monge; ela, taça de champanhe em punho, brindando com um grupo de amigos.

Fade out…

Primeira tomada: cidadezinha do interior onde absolutamente tudo acontece.

É lá que vive nossa protagonista de vida intensa. Cabelos castanhos claros, de um ondulado natural, olhos azuis, corpo pequeno, embora bem feito, dentes grandes e de um branco profundo, ar aventureiro e desencanado. Uma Amanda Peet.

Tem um namorado que trabalha no mercado financeiro, na cidade grande mais próxima dessa cidadezinha pequena onde tudo acontece. Ele é lindo, usa terno, óculos de grau e tem um leve sotaque britânico. Um Jude Law.

Corta para ela, que acorda com o despertador.

Está maquiada, mas com aquela cara de quem não está maquiada em hipótese alguma. Jude já saiu. Estaria sozinha na cama, não fossem os vários travesseiros fofos e uma bandeja de café da manhã, com um lisianto lilás em um vasinho e uma caixinha de jóia. Dentro dela, um anel. E um pedido escrito com mel sobre a porcelana: “quer se casar comigo?”.

Close.

Olhar tenso.

Já sabemos, então, que provavelmente ela não gosta muito da idéia de se casar.

Segunda tomada. Ela sai de casa, nitidamente atordoada com a concretização do pedido de casamento do Sr. Law. Veste um macacão jeans desbotado e galochas vermelhas, modelito desleixado, feito propositalmente para lhe cair super bem.

Ela trabalha num Pet Shop super meigo lavando e tosando bichinhos peludinhos. Sua maior e mais fofa ambição é fundar uma ONG para salvar cachorrinhos de rua. Sua colega no Pet a recebe com um bom dia. Boazinha, meio feiosa (no sentido de mal cuidada, mas com certo potencial) e voz anasalada. Uma senhorita Topisto versão Século XXI. Nossa heroína conta o acontecimento daquela manhã e relata que está sem saber como irá reagir à noite, quando Jude voltar de Wall Street. Senhorita Topisto esboça um mix de inveja e de incredulidade diante da dúvida da amiga. Mas antes que possa expressar seu ponto de vista – “não seja idiota, case–se com ele” – entra na loja um rapaz tímido, cabelinho ensebado e um labrador pelas mãos. Um Ethan Hawke.

Amanda lembra-se imediatamente dele e de sua família de pescadores. Haviam sido namorados na adolescência, mas fazia anos que não o via pela cidade. Ele sorri, abaixando os olhos e a cabeça, mas troca com ela um rápido e pudico “puxa, há quanto tempo”. Ele conta, de um jeito bem Ethan, que o cachorro precisa de um banho, e diz que é ele quem o ajuda nas pescarias (trata-se de uma cidadezinha pequena, onde tudo acontece, perto de Wall Street e litorânea). A conversa não deslancha, culpa da timidez crônica de Ethan, que então decide deixar o cachorro para tomar banho e se dirige para a porta. Antes de sair, olha para trás e conta que sua filhinha mais nova tem o mesmo nome dela, mas que eles a chamam pelo apelido de Mandy. Ela sorri. E eles se despedem. A sineta da porta faz barulho. Corta para momento introspectivo, pois aquele encontro confunde ainda mais a cabeça de Amanda.

Será que Jude é mesmo seu amor? Será que é para sempre? Será que a vida dela deveria ter sido ao lado de Ethan, pegando moluscos e vivendo sob a luz de lampiões?

Amanda larga a senhorita Topisto atolada de gatinhos e cachorros e resolve sair sozinha de carro, para espairecer e pensar.

Tomada 3. Nossa heroína pára seu jipe na beirada de um cânion (trata-se de uma cidadezinha pequena, onde tudo acontece, perto de Wall Street, litorânea e a 12 km de um cânion gigante e magnífico), onde pretende permanecer pensativa, olhando para o horizonte. Mas ao descer do carro, percebe um pneu furado. Vai até a estrada e começa a pedir ajuda. Ao longe, ela vê um motoqueiro se aproximando. Por um momento, fica com medo de que se trate de um Nicholas Cage. O motociclista se aproxima, diminui a velocidade, para ao seu lado e remove o capacete. Baixinho, boquinha torta, cara de bonzinho. Um Mark Rufallo. Que está perdido, cruzando o país sobre duas rodas numa aventura solitária e sexy. Depois de ajudá-la a trocar o pneu, ele pede para segui-la até a cidade, onde pretende procurar por um hotel para descansar. Ela o deixa na porta da pousada mais charmosinha de toda cidade e ele agradece com um beijo no rosto, mas com uma cara de amor à primeira vista.

Corta para outro momento introspectivo. Ela não sabe mais o que pensar. A história atinge o clímax de angústia. “Jude, Ethan e agora Mark! Só faltava aparecer um Ashton Cutcher tocando Bon Jovi na minha soleira!”.

Vai para casa. Já é fim de tarde.

Prepara um banho e enche uma taça de vinho branco. E é então que chega Jude, todo loiro. Jude está meio puto. Comenta, com ela dentro da banheira, que a haviam visto na porta de uma pousada com um motoqueiro de boca torta. Anda de lá para cá no banheiro, coçando o queixo e a cabeça, nervoso. Ela tenta explicar. Conta o que havia acontecido, com riqueza de detalhes. Mas ele se mostra um ciumento descontrolado que ela jamais havia visto antes. Daria para jurar que era um Joaquim Phoenix, de tão nervoso. Diante disso, ela cria coragem. Diz que é óbvio que eles não estão prontos para assumir um casamento. Ele joga o anel pela janela e sai chorando.

Ela se enrola na toalha e se senta à beira da bay-window.

Música triste. Algo de Norah Jones ou Amos Lee.

Cenas em câmera lenta, com fade ins e fade outs: chove lá fora; Ethan com seu cachorro, sua filhinha e sua mulher sem graça na varanda de uma casa de pescadores; Mark assistindo TV na pousada mais charmosa da cidade tomando uma Bud Light; Jude, bêbado, chorando no balcão de um boteco ao lado do bartender.

A música termina e já é de manhã.

Com a cabeça ainda atordoada, ela escuta a campainha.

Abre a porta da frente e dá de cara com um entregador da UPS.

Espartano, irlandês, romântico, engraçado, fortão e peludo. Um Gerard Butler. Que até então jamais havia aparecido na história.

O que ela faz?

Pula no seu colo, morde o seu pescoço e enfia a língua na sua boca com a sede de quem nunca havia visto um homem sequer na sua vida.

Ele corresponde, é claro. Vocês leram a definição do seu papel?

E eles se casam e se mudam para bem longe daquela cidadezinha ridícula onde tudo acontecia.

Adeus Wall Street, galochas vermelhas, Marks, litoral, Ethans, cânions, ONG de salvação de animais, Judes, pedidos de casamento feitos com mel, travesseiros fofos.

Adeus.

Fim.

Sobe o letreiro.

Moral da história?

Se um dia um Gerard Butler bater na sua porta, cague para o resto do mundo, descomplique a vida e vá ser feliz, minha filha.

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