CLÉU ARAÚJO
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Impeachem-me, por favor!

por: Cléo Araújo

28 AGO

2008

Uma vez, quando tinha nove anos, eu participei de uma passeata.
É que tinha esse bosquinho em frente de casa que vivia abandonado.
Sujismundos jogavam lixo em suas laterais, corpos de bichos falecidos jaziam a céu aberto, carrapatos passeavam soltos em plena luz do dia, bandidos se escondiam na penumbra das árvores, casais avançadinhos se amassavam contra elas, era uma terra de ninguém.
Então, os moradores mais conscientes e metidinhos – eu incluída – se organizaram. Queriam que o prefeito se mexesse, fizesse ali uma praça, com ruas calçadas, postes de iluminação, guardinhas, tudo que a classe média de um bairro residencial de uma cidade do interior se vê no direito de ter.
Produzimos faixas, camisetas, pelotões e gritos de guerra: “Ferreirinha, cadê nossa pracinha?!”.
Convidamos a rádio local AM de maior audiência. E eles foram até lá fazer a cobertura do movimento. Eu, uma das idealizadoras da intentada, fui entrevistada, ao vivo, para o programa de Leonel Jorge. Achei boa aquela sensação de falar por todos. Seria fácil pegar gosto. Demorou, mas alguns meses depois estava lá a simpática praça, onde continuávamos fazendo piqueniques, colhendo amoras e andando de bicicleta, mas agora na mais perfeita segurança e com completa salubridade. Era um tempo em que eu acreditava nas coisas e nos pleitos.
A próxima experiência, que aconteceu ainda sob o entusiasmo de me sentir querida pelo “povo”, foi no grêmio estudantil do colégio. E já que era para me expor, fui logo mandando de Presidente da chapa.
Corria pelas salas com a minha equipe de assessores compartilhando as nossas propostas de “governo”: luta pela liberação do uso de tênis colorido, implantação de sinetas eletrônicas (para evitar que algumas pessoas não ouvissem a Irmã Ilda tocando uma sinetinha de bronze num pátio de 500 metros quadrados), excursão para o Playcenter, uso do laboratório de ciências a partir da 4ª série e organização de shows de talentos na hora do recreio (outras coisas além das músicas eclesiásticas, coisas que estivessem na trilha sonora da novela “O Outro”, por exemplo). Lutei. Lutei com ímpeto de oposição. Acreditava que os pequenos da 4ª série tinham de fato o direito de saber o que era um Bico de Bunsen. Indispus-me com o Presidente da chapa adversária (que era do 2º colegial), que dizia que isso era impossível e pura demagogia de minha parte. Desconfiei da idoneidade do sistema de apuração. Acompanhei a contagem dos votos, cédula por cédula.
Perdi.
Resolvi então ser cabo eleitoral do Mário Covas quando candidato a Presidente da República em 1989. Participei dos comícios, escrevi cartas, artigos para o jornal da escola.
Mas perdi de novo. E acho que foi aí que comecei a me chatear.
Quando foi tempo de pintar a cara para o Impeachment, já estava cansada demais.
O tempo passou. Eu me mudei. Mas nunca transferi meu título de eleitor. O que significa que há cinco eleições eu justifico o meu não-voto.
Preferi pagar a taxa de lixo extinta a reclamar a sua validade.
Nunca ligo para SACs.
Não participo de concursos culturais.
E acho difícil acreditar que ainda seja tão querida pelo “povo” quanto antes.
Transformei-me em uma ex-engajada. Uma democrata descrente e pouco participativa.
E estou aqui, quieta no meu canto, quando chega em minhas mãos o pedido encarecido de alguns moradores do meu prédio; um clamor público para que eu aceite uma função na nova chapa que quer administrar o condomínio. Eu acredito neles. Mas não quero uma função nem que seja a de assessora da sub-conselheira suplente.
Imagino… Na primeira vez que o interfone tocasse e fosse algum morador querendo cobrar uma das promessas de campanha, o meu reflexo provavelmente seria correr para o quarto, fazer as malas, provocar um auto-impeachement, procurar um cirurgião plástico e sumir para sempre na clandestinidade.
Procuraria uma anarquia perdida por aí.
E viveria feliz para sempre, em terra de ninguém.

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