CLÉU ARAÚJO
Crônicas Contos Aforismos Fatos Invenções

Dá para voltar de carro?

por: Cléo Araújo

19 MAI

2005

Eu morro de medo de voar. E acredito que a diferença entre mim e todas as outras pessoas do mundo que não têm medo é o fato de elas mentirem sobre o assunto. A questão é: medo todos têm, uns menos, outros mais. Mas todos têm. Basta olhar nas faces das pessoas na sala de embarque dos aeroportos. Por mais que alguns tentem disfarçar, ele aparece: aquele medinho, aquele friozinho, aquela vontadezinha de desistir.

O meu é daqueles meio grandes. Ele é grande, não gigantesco. Ainda não fui impedida por ele de fazer alguma coisa – geralmente a vontade de estar em algum lugar longínquo é maior do que o medo. Mas é um medo razoavelmente grande. Causa um certo sofrimento, um certo envelhecimento precoce.

Já voei bastante. Pra longe, pra perto, com turbulência, sem turbulência, com interrupção do serviço de bordo, sem interrupção do serviço de bordo. De dia, de noite. Mas sempre, sempre acordada. Ligada em todos os sons, sentindo todos os cheiros, observando todos os movimentos da tripulação.

Tem uma diferença entre voar na ida e voar na volta. Quando vôo na ida, se algo que fuja do corriqueiro começar a acontecer, penso imediatamente na possibilidade de voltar de ônibus. Calculo a distância entre os dois pontos, para imaginar quanto tempo uma viagem rodoviária poderia levar; ou, quando tem o Atlântico no meio, fico pensando em navios oceânicos como uma alternativa de transporte intercontinental. Mas, nunca aconteceu. Tenho medo de avião, mas também tenho pressa.

Alguns pilotos compartilham demais as informações de vôo conosco, leigos passageiros. Outras compartilham de menos e nenhum dos perfis é o ideal. Piloto tem que falar firme, passar segurança, informar o estritamente necessário e aparecer no radinho de tempos em tempos para gente ter certeza que eles estão lá, acesinhos. Muita informação, nesses casos, mais atrapalha do que ajuda.

Já me vi em vôo segurando dois copos de vinho tinto ao mesmo tempo. Um na mão esquerda, outro na direita. Vôo turbulento, nuvens pesadas logo abaixo. E alguns relâmpagos. É como se, a cada vez lá em cima, tivesse chegado a hora. Invejo os que dormem, os de semblante relaxado, os fingidos e os dopados por algum calmante ou hipnótico. Enquanto eu fico tentando enfiar os dois copos de vinho na boca e olhando no relógio a cada trinta minutos. Não vomito, não desmaio, não fecho os olhos. Só transpiro muito, grudo da cadeira e evoco todos os santos. Sempre acho que dessa vez não vou chegar.

Até hoje, venho chegando. Que momento feliz, avistar São Paulo lá de cima, sentir o trem de pouso tocar o chão e ouvir aquela sinfonia de fivelas do cinto de segurança sendo desabotoadas. É o clec-clec-clec mais feliz do mundo! Corredor, esteira de bagagens, liberdade! Dentro do táxi, afastando-me do aeroporto, sempre penso na minha relação de amor e ódio com os aviões. Os temo da mesma forma como os adoro e acredito e duvido deles ao mesmo tempo. Gosto particularmente das descidas porque nesse momento eu sei que o objetivo deles é voltar ao chão. E quando menos espero, já estou de novo embarcando num próximo, nesse ciclo que se repete, nesse sobe e desce deliciosamente aterrorizante.

Deixe seu Comentário

Aviso: A moderação de comentários está habilitada e pode atrasar seu comentário. Não há necessidade de reenviar seu comentário.