CLÉU ARAÚJO
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Meia nuvem

por: Cléo Araújo

06 JAN

2012

Acordou no meio da noite. Começo da manhã. Talvez. Sono leve, sono breve, sono pouco importante. Era dormir? Talvez um cochilo. Talvez. Embora um sonho… Com o quê? Não sabia. Um elevador, talvez. Sempre um elevador descontrolado, subindo e subindo para um céu de nuvens além dos andares possíveis.

Estava acordada. Estava? Escorregou debaixo do edredom, tão pesado, rumo ao pé da cama. Sua panturrilha, ali. Sua panturrilha, dormindo. Pelos escuros, pelos claros, pelo nenhum. Era assim, aquela panturrilha. Perfeitamente assim. Ba-ta-ta da per-na.

Um cheiro doce, um quarto laranja. A neve, lá fora. A neve, caramba.

O pé descalço tocou o assoalho de madeira. Primeiro, alguns dedos. A sola, corajosa sola.

Levantou-se, devagar. Nada para segurar seus cabelos. Nada. A luz fraca de uma vela já em estado líquido, tantas alucinações. Alucinações de cortina, trêmulas, insones, que gentilmente a guiaram até a porta, entreaberta. Meias grossas e cansadas, jogadas. Não se lembrava delas. Não se lembrava de meias. Não se lembrava.

Um corredor, escuro. Deslizou lenta, mão direita apoiando a parede até sentir o ar mais frio do banheiro. Breu. Medo de entrar no quarto errado, do amigo. François? Gérard? Quem se lembra?

O pé, tão nu sem suas meias, cansadas, não se lembrava de meias. Sentiu o piso frio. A porta rangeu sem tranca. Alguém tossiu. Tosses são assim.

Acendeu a luz sobre a pia. No espelho, todos os fusos horários debaixo de seus olhos. No entanto, nunca lhe pareceu tão, tão..., não para si. Assim, sem nada que lhe segurasse os cabelos. Assim?

Procurou por uma pasta de dentes. Encontrou. Bochechou água em estado semilíquido, tão fria. A neve, caramba. Fez xixi sem querer, só para não ter que voltar mais tarde. Apagou a luz e saiu pela menor fresta da porta que pôde para evitar o ranger e as
tosses.

Voltou para o quarto, para a luz laranja, para as alucinações e para a panturrilha mais perfeita de todas as panturrilhas. Que  dormia, tão quieta, ah essas panturrilhas de pelos escuros, claros, pelo nenhum. Ba-ta-tas  da per-na.

Arrastou-se para debaixo das cobertas, para o lado de seu corpo tão quente. Fez o possível para evitar o contato de dedos gelados
contra o corpo dele. Era só injusto.

Levou o rosto e os lábios sabor Crest Invigorating Clean Mint para perto de sua nuca. Nuca quente, nuca doce. Nuca.

Ele se virou, abriu os olhos.

Um quadro com o mapa de um metrô.

Um saquinho de chá.

Cinco dedos lhe percorrendo a franja, desgrenhada. Tolice, franja, quem se importa?

Se ficasse ali para sempre, pensou, nunca mais saberia o que é dormir.

Nunca mais saberia.

Nunca mais.

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