CLÉU ARAÚJO
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Relatos de uma menina diáfana

por: Cléo Araújo

23 NOV

2006

Ele reparou que eu estava quase completamente ridícula. Só pode ter reparado.

Duas taças de vinho em menos de dez minutos, depois de ter passado a tarde toda com siricotico. E a seco. Novidade faz isso comigo. Me dá essa pressa de viver, me dá essa sede de gente, me deixa inquieta, por dentro e por fora.

E aí, quando cheguei perto dele, o tempo de aguardo acabou não colaborando em nada com a minha idéia pré-estabelecida de manter-me sob controle. Minhas mãos, por exemplo. Vida própria. Eu mesma não respeitaria essa pessoa.

Aí, eu pensei “Vamos embora! Você tem quinze minutos para me tirar daqui, transformar minha vida, virar tudo de cabeça para baixo”. E ele deve ler mentes. Ele deve ter lido isso.

Tentei explicar, telepaticamente, então, que eu me sentia como se há séculos, eras, encarnações, eu não me envolvesse por vontade própria, e mais: com gosto. Eu havia sofrido de falta de cobiça. E, de repente, eu estava ali, cobiçando. Despudoradamente.

E deve ter sido aí, quando a cobiça me dominou, que meu rosto se tingiu daquela vermelhidão contida, do tipo que acomete quem quer posar de moça correta, de moça que espera a hora, de moça que não transpira, não quer, não deseja, mas que é transparente feito regata de renda em desfile da Fashion Week.

E as mãozinhas lá, tamborilando seus dedos na mesa, para ver se assim eles se cansavam e continham seu entusiasmo. Mulher nenhuma gosta de se entregar assim desse jeito, oras… As pessoas precisam entender isso. Não se trata de fingir uma coisa que não se sente, mas de se controlar, de se fazer uma pose. Mulher faz pose. Eu só exclamava por dentro. De boca calada. Devo ter me calado em alto e bom som. Porque acho que ele ouviu meu silêncio barulhento. Ouviu porque riu, com doçura, da minha cara de boba. Legendas devem ter passado dentro dos meus olhos, que o encaravam, feito faróis libidinosos, escancarados, delatores.

E eu pedia que meu corpo colaborasse, não me entregasse assim, desse jeito assim, tão sincero. E eu pedia que a minha alma, também, se calasse um pouco, fizesse silêncio absoluto pelo menos uma vez na vida, para que assim eu conseguisse ouvir as batidas do seu coração. Quando eu estava quase, mas quase conseguindo ouvir meu nome batendo lá dentro, já era hora de dizer que eu precisava ir embora.  E eu fui.

Quando a gente se comunica, eu sempre fico esperando que ele compreenda tudo isso, esse turbilhão de sensações que insiste em me denunciar quando ele demora mais de dez segundos para me abraçar.

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