CLÉU ARAÚJO
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Sete de setembro

por: Cléo Araújo

09 SET

2010

Ainda bem que estava escrito. Não era coisa para se esquecer, apesar de eu não me lembrar mais muito bem, graças a Deus.

A tarde era de feriado, inofensiva, quieta, lenta.

Na minha antiga casa, armários, muitos deles, e minha vida de ontem.

Sempre fui de guardar tudo. Bilhete borrado, pequeno pônei com rabo embaraçado, pulseira arrebentada do Nosso Senhor do Bonfim, ficha de cerveja de festa da faculdade. Mas quem poderia jogar fora um hino ao Espiga, por exemplo, um garoto de cabelos vermelhos flamejantes que atazanava a vida do pobre Prof. Pôncio, e que foi composto durante a aula de desenho, entre uma parábola e uma hipérbole mal feitas e que tinha um refrão digno de Chico Buarque: “Espigão, ó, Espiga mia, que destrói as hipérboles de Pôncio, mas alegra sempre o meu dia”? Ou uma única ficha de cerveja, que passou para a posteridade sem nunca ter sido consumida entre festas de nomes sugestivos tais como “Todo Torto” e “Só Capim & Canela”?

Nessas de guardar, as agendas, poderosas, gordas, cheias de clipes, recortes, corações e lágrimas. Com registros de-ta-lha-dís-si-mos de episódios marcantes e nem tão marcantes assim da vida de uma adolescente intensa dos anos 1990 (pleonasmo triplo), e embora tudo até os 20 anos de idade, suponho, seja marcante o suficiente para ser registrado. Do 5,5 em álgebra ao discurso da formatura da escola de inglês, tudo lá, assinado, selado, entregue às lembranças.

Sentada em meio ao passado, folheando página por página a minha história num dado intervalo, como que relendo um dossiê da minha própria interpretação de mim mesma, fui sendo consumida por um incômodo.

Li, dia por dia, linha por linha, essa sequência de três anos específicos do meu passado. Três agendas = três anos = trinta e seis meses = mil e noventa e cinco dias. T-O-D-O-S vivendo uma obsessão infinita por um namorado infinito e um amor infinitamente infinito que, um dia, ah!, acabou.

Ler com atenção todo aquele rendimento físico e mental, testemunhar letra por letra certa estupidez adolescente que, não me engano, deixaram marcas definitivas em mim – seja pelas escolhas que fiz naqueles tempos, seja pelo meu inconsciente, que felizmente, eu não sei o que pensa, seja porque dava para pegar com a mão a metamorfose emburrecedora na qual me meti ao cair de amores aos dezesseis anos. Não, gente, paixões aos dezesseis não são inofensivas. São perigosas, e de um perigo que nada tem a ver com uma gravidez no colegial ou um baseado escondido no estojo. São uma catástrofe especial quando na mão de uma sobrevivente de si mesma que, aos 30, resolve dar uma olhadinha na sujeira que estava embaixo do tapete, disfarçada de lembrança boa.

Não era uma lembrança boa. Lembrança boa era cheiro de 7 Belo no Cine Peduti. Lembrança boa era dormir na chácara da avó. Lembrança boa era tarde na piscina, festa dançante, violão do Adriano de Presidente Prudente, beijo roubado na faculdade. Aquilo que eu lia, não. Aquilo talvez tenha uns dez dias de lembrança boa no cômputo final. No geral, era lembrança incômoda.

De repente, passei a não gostar e a não pensar. Era tudo ele, ele, ele e depois, ELE, ELE, ELE. As agendas eram dele. Experimente dar de cara com sua própria abdução? Estupidez! Peço desculpas a mim mesma, mas, bom, eu, não tem como chamar esse nhém nhém nhém todo de outro jeito que não de estupidez. E elas vão explodindo em sequência feito um bombardeio aéreo na minha cabeça: “Hoje ele ligou!” BUM! “Hoje ele estava bonzinho!” BUM! “Chorei o dia todo!” BUM! BUM! BUM!

Foi me subindo um fogo da cor do cabelo do Espiga por dentro do esôfago, uma irritação, uma vontade de entrar no De Lorean, voltar no tempo, dar uns tapas na minha própria cara, me chamar de imbecil e dizer que não precisava daquilo tudo. Que aos 30 eu estaria sentada no jardim num sete de setembro qualquer, olhando para aquilo como se fosse a vida de outra pessoa. Antes fosse!

Foi feito uma erupção que, quando vi, rasgava e destrinchava as agendas de brochura da Yes Brazil, da Ellus e da Body For Sure sem pensar duas vezes. Piquei tudo em pedacinhos microscópicos e só não ateei fogo em tudo porque estamos em plena temporada de seca – não convinha incendiar o bairro só porque eu tive um ataque de Feng Shui enlouquecido.

Nunca havia picotado meus guardados.

Mas também, nunca mais havia sentado para folheá-los. Pelo menos não essa leva.

Ao final da chacina, peguei uma vassoura para tirar do chão o pó de uma rosa que virou um fóssil e que caiu no meu colo, me fazendo espirrar.

Foi no feriado da independência, zilhões de anos depois, que varri tudo, juntei na pá e joguei no lixo.Sujeira embaixo do tapete, nunca mais.

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